terça-feira, 22 de dezembro de 2015

SESSÃO 2 - 11 DE JANEIRO DE 2016


E DEUS… CRIOU A MULHER (1956)

Roger Vadim não pertencia ao grupo dos “Cahiers du Cinema” que reclamou para si a criação da “Nouvelle Vague”, em finais da década de 50 do século XX, mas a verdade é que se há filme que tenha lançado um novo movimento em França, em 1956, esse filme foi "Et Dieu... Créa la Femme". Por variadíssimas razões: um jovem realizador que não tem atrás de si nenhuma experiência a não ser como argumentista, uma produção bastante diferente da dos habituais estúdios franceses da época, uma realização muito mais livre e espontânea, rodada em grande parte em exteriores (e interiores) naturais (na Riviera francesa, sobretudo em La Ponche e Saint-Tropez), uma atenção muito especial a personagens jovens, com comportamentos que se desviavam muito dos padrões tradicionais, actores quase desconhecidos (Brigite Bardot tinha atrás de si uma carreira de figurante e de secundária até 1956, o mesmo se podendo dizer de Jean-Louis Trintignant), sobretudo sem as técnicas de representação do então chamado “cinema de papa”. Pode, portanto, dizer-se que se não está incluída no lote das películas que os puristas da “Nouvelle Vague” advogam, será certamente um excelente exemplo prévio do que se anunciava. Com a agravante de o seu êxito comercial e de crítica muito ter contribuído para abrir caminho às obras de Truffaut, Godard, Rivette, Chabrol, e tantos outros. De resto, nenhuma linha ideológica unia estes cineastas, e a sua atenção inicial virou-se sobretudo para os mesmos temas de Vadim: os jovens, a sua rebeldia perante a sociedade onde cresciam, perante a hipocrisia de um stato quo bem instalado que não quer perder as regalias de que usufrui. Jovens que descobrem uma sexualidade livre, que rompem com tabus, que expõem o corpo e o desejo, que querem viver perigosamente. Veja-se o caso de Juliete Hardy (Brigitte Bardot), a protagonista de “E Deus… criou a Mulher”, quando lhe perguntam porque dispara contra garrafas: “Adoro disparar. É excitante”.


Numa zona piscatória de St. Tropez, Juliete Hardy, uma órfã com cerca de dezoito anos, é empregada numa tabacaria, e vive sob a custódia de uma família que a adoptou, retirando-a do orfanato. Juliete é temperamental, rebelde, de sangue quente e de sexualidade à flor da pele. Não será de estranhar que todos se virem quando passa, sobretudo montada na sua bicicleta e com uma roupa colado ao corpo, desenhando-lhe as formas e deixando adivinhar o desejo inquieto. Eric Carradine (Curd Jurgens), um homem de meia-idade e bem instalado nos negócios dos estaleiros, não esconde as intenções, nem ela lhe esconde o corpo, quando este a visita, e a encontra a tomar banhos de sol, nua. Mas Antoine Tardieu (Christian Marquand) também a deseja, com intenções igualmente pouco recomendáveis. Quando a postura de Juliete começa a dar brado na comunidade e as vozes se levantam, os pais adoptivos querem devolvê-la ao orfanato. Para impedir esse desenlace, Michel Tardieu (Jean-Louis Trintignant), o generoso e algo ingénuo irmão mais novo de Antoine, oferece-se para casar com Juliete. O que acontece, com consequências dramáticas.


Nos anos 50, tudo é escandaloso neste filme. Não que a realidade do dia-a-dia não confirmasse todas as situações e personagens, mas nunca tinham sido apresentadas no cinema imagens com tal crueza. Antes de tudo o mais, a figura de Juliete Hardy, a sua irreverência, a sua ingénua perversidade (parece contraditório, mas não é, está patente e é um dos fascínios desta personagem), o gosto pelo risco, a sedução, o erotismo selvagem e sem regras, tudo isso transtorna as mentes bem pensantes da época. Juliete Hardy é a provocação em andamento, e não foi de estranhar que as Ligas de Decência dos EUA tenham boicotado a obra, pouco depois de terem feito o mesmo ao filme de Elia Kazan “A Voz do Desejo” (Baby Doll), igualmente de 1956. O escândalo ajudou a promover o título, que rapidamente se tornou um sucesso. Depois, o interesse pouco ortodoxo de um homem de certa idade por uma jovem de dezoito anos não era tema fácil de digerir, nem sequer a forma como Antoine deseja a presa que julga fácil. A ingenuidade de Michel Tardieu e a forma como ela é rapidamente ultrapassada por Juliette será outro motivo de inquietação. Nada no filme se coaduna com os “bons costumes” que as “gentes de bem” pregam (mesmo que muitas vezes os não pratiquem na prática, mas esse é um outro problema: vícios privados, públicas virtudes, é o lema). O que “E Deus…Criou a Mulher” vem pôr a descoberto é precisamente essa duplicidade de olhar e de comportamento. Roger Vadim e a sua vedeta de momento escancaram a hipocrisia da V República Francesa. Juliete Hardy ficará para sempre como o símbolo de uma juventude rebelde e insubmissa. O retrato feminino e francês dos “teddy boys” americanos que eram visíveis em filmes como “Fúria de Viver” (Rebel Without a Cause), “O Selvagem” (The Wild One) ou “Sementes de Violência” (Blackboard Jungle).


De resto, a obra de Vadim apresentava uma espontaneidade de olhar e de escrita que surpreendia e mostrava uma Saint-Tropez que rapidamente se tornaria uma sensação turística por causa dos feitos de BB (o mesmo aconteceria mais tarde na paria de Búzios, no Brasil, que a actriz visitou e que tornou famosa de tal forma que tempos depois se lhe erigiu uma estátua no centro da cidade). Brigitte lançava-se aqui também como cantora, sobretudo com um tema que faria furor: “Dis-moi quelque chose de gentil”.
O filme acaba, de certa forma, por castigar a ousadia da jovem, mas ostentar essa sensualidade de que os homens se aproximam mas não conseguem refrear (é ela sempre que comanda as operações, ainda que nem sempre da melhor maneira) era já de si um elemento perturbador e profundamente “novo”. Para mais numa pouco mais que adolescente. Era um passo importante na emancipação da mulher, sobretudo na assunção de um lugar idêntico ao do homem, num capítulo tão sensível como a sexualidade. 



E DEUS… CRIOU A MULHER
Título original: Et Dieu... Créa la Femme
Realização: Roger Vadim (França, Itália, 1956); Argumento: Roger Vadim, Raoul Lévy; Produção: Raoul Lévy, Ignace Morgenstern; Música: Paul Misraki; Fotografia (cor):  Armand Thirard; Montagem: Victoria Mercanton; Design de produção: Jean André;  Maquilhagem: Hagop Arakelian; Direcção de Produção: Michel Choquet, Claude Ganz, Jacqueline Leroux-Cabuis; Assistentes de realização: Pierre Boursaus, Paul Feyder;  Departamento de arte:  Jean Forestier, Georges Petitot; Som: Pierre-Louis Calvet; Companhias de produção: Cocinor, Iéna Productions, Union Cinématographique Lyonnaise (UCIL); Intérpretes: Brigitte Bardot (Juliete Hardy), Curd Jürgens (Eric Carradine), Jean-Louis Trintignant (Michel Tardieu), Jane Marken (Madame Morin, Jean Tissier (M. Vigier-Lefranc), Isabelle Corey (Lucienne), Jacqueline Ventura (Mme Vigier-Lefranc), Jacques Ciron, Paul Faivre, Jany Mourey, Philippe Grenier, Jean Lefebvre, Leopoldo Francés, Marie Glory, Georges Poujouly, Christian Marquand (Antoine Tardieu), Roger Vadim (um amigo de Antoine no carro), Raoul Lévy (um jogador), etc. Duração: 95 minutos; Distribuição em Portugal: PrisvÍdeo; Classificação etária: M/ 12 anos.


BRIGITTE BARDOT (1934 - )
Foi Jean Cocteau, quem a dirigiu num filme seu, que dela disse: “A sua beleza e talento são inegáveis, mas ela possui qualquer coisa mais que atrai os idólatras numa época privada de deuses". Falava de Brigitte Bardot. Nasceu a 28 de Setembro de 1934, em Paris, França, de uma família burguesa, bem instalada na vida. A mãe é Anne-Marie Mucel, o pai, Louis Bardot, um industrial de ar líquido, dono das Usines Bardot, e um entusiasta por cinema. Educada de forma rigorosa, desde muito nova que lhe foi diagnosticada uma ambliopia, disfunção oftálmica caracterizada pela perda da visão num dos olhos, no seu caso o esquerdo. Estuda dança clássica, sendo uma óptima aluna do curso Bourgat. Em 1949, entra para o Conservatoire de Paris. Nesse mesmo ano, Hélène Lazareff, directora então da “Elle” e do “Jardin des Modes”, grande amiga de Madame Bardot, escolhe Brigitte para apresentar a moda jovem. Aos 15 anos, torna-se no símbolo juvenil da “Elle”, aparecendo na capa. Marc Allégret, realizador, aprecia as fotos, e convoca-a, mas os pais opõem-se a que ela seja actriz. Foi o avô que a defendeu: “Si cette petite doit un jour être une putain, elle le sera avec ou sans le cinéma, si elle ne doit jamais être une putain, ce n'est pas le cinéma qui pourra la changer! Laissons-lui sa chance, nous n'avons pas le droit de disposer de son destin”. O assistente de Allégret era Roger Vadim. O encontro não leva a filme nenhum na altura, mas a uma paixão entre Vadim e Brigitte. A relação não é bem vista pelos pais, que a querem enviar para Inglaterra. Aproveitando o facto de os pais irem a um concerto, tenta suicidar-se com gás. Foi o acaso do espectáculo ter sido cancelado que lhe salvou a vida: regressados a casa mais cedo, os Bardot salvam a filha, e aceitam não a enviar para Inglaterra, a troco da promessa de ela não casar com Vadim, senão aos 18 anos. O que acontece. Só a 21 de Dezembro de 1952. Estreia-se, entretanto, no cinema, num filme de Jean Boyer, “Le Trou Normand”, num pequeno papael mínimo. Continua em papéis insignificantes, em filmes importantes, ou papéis mais importantes, em filmes insignificantes. Passa pelo teatro, em “L'Invitation au Château”, de Jean Anouilh. Uma experiência falhada, que não irá repetir.

A consagração chega em 1956, quando Roger Vadim e Raoul Lévy escrevem um argumento intitulado “Et Dieu... créa la Femme”. Ninguém queria produzir o filme, mas toda a gente comentava já a beleza provocante de uma jovem que passeava por Cannes. Foi Curd Jürgens, um actor de prestígio na época, que aceitou patrocionar o filme que se iria rodar numa localidade não muito conhecida, Saint-Tropez. O filme iria alterar tudo isso: Brigitte Bardot passaria rapidamente a ser a mundialmente conhecida como BB, lenda e mito do cinema, modelo para a estátua da República Francesa, sex-symbol international, paradigma para a juventude. Saint-Tropez passava a ser destino de eleição na Riviera Francesa. Vadim seria realizador do momento. Consta que um caso com Jean-Louis Trintignant iria precipitar o divórcio com Vadim, a 6 de Dezembro de 1957.
Sobre “E Deus Criou a Mulher”, Vadim disse: “Je voulais, à travers Brigitte, restituer le climat d'une époque, Juliette est une fille de son temps, qui s'est affranchie de tout sentiment de culpabilité, de tout tabou imposé par la société et dont la sexualité est entièrement libre. Dans la littérature et les films d'avant-guerre, on l'aurait assimilée à une prostituée. C'est dans ce film une très jeune femme, généreuse, parfois désaxée et finalement insaisissable, qui n'a d'autre excuse que sa générosité”.
Mal acolhido em França, é exportado para os EUA, onde conhece um triunfo invulgar. Fala-se em “bardotlatria”. Relançado em salas francesas, é agora um sucesso. Os “Cahiers du Cinéma”, que haviam menosprezado o filme e os intérpretes, engolem seco. BB é a francesa mais conhecida na América. A imprensa fala de uma mulher que conjuga o melhor de Marlène Dietrich, de Ava Gardner, de Jane Russell, de Marilyn Monroe, numa mistura explosiva, com uma fantasia pessoal muito própria. Torna-se a mulher fetiche das décadas de 50 e 60 do século XX. O símbolo da emancipação feminina e da liberdade sexual. Mulher-criança, mulher fatal. Uma mescla explosiva que não deixou ninguém indiferente. No feminino, só Simone de Beauvoir ou Françoise Sagan se lhe aproximaram em celebridade. Roda sob as ordens de alguns dos maiores realizadores desse tempo: Sacha Guitry, Marc Allégret, René Clair, Anatole Litvak, Robert Wise, Claude Autant-Lara, Christian-Jaque, Serge Bourguignon, Henri-Georges Clouzot, Jean Cocteau, Louis Malle, Jean-Luc Godard, Édouard Molinaro, Edward Dmytryk, Michel Deville, Robert Enrico, Nina Companeez, para lá do próprio Roger Vadim. Entretanto, a sua vida sentimental é tumultuosa. Durante as filmagens de “Babette Vai à Guerra” (1959), conhece Jacques Charrier, casam e permanecem unidos até 1962. Em 1966, volta a casar com Gunter Sachs, com quem se mantém até ao divórcio, em 1969. Só em 1992 volta a casar, agora com o político de extrema-direita Bernard d'Ormale. Dizem os biógrafos que manteve relações com Jean-Louis Trintignant, Sami Frey, Gilbert Bécaud, Serge Gainsbourg, Sacha Distel, o escritor John Gilmore e o escultor Miroslaw Brozek. Como cançonetista conhece igualmente o sucesso, com temas como "Harley Davidson", "Je Me Donne A Qui Me Plait", "Bubble gum", "Contact", "Je Reviendrais Toujours Vers Toi", "L'Appareil A Sous", "La Madrague", "Le Soleil De Ma Vie", "On Déménage", "Sidonie", "Tu Veux, Tu Veux Pas". Em 1973, com 39 anos, e depois de concluir as filmagens de “L'Histoire très Bonne et très Joyeuse de Colinot Trousse-chemise”, de Nina Companeez, abandona o cinema e retira-se. Sobrevive a um cancro da mama, e torna-se um ferverosa defensora dos direitos dos animais. Em 1986, inaugurou a Fondation Brigitte-Bardot e desenvolve várias campanhas em prol dos animais. Patrocina a série de TV francesa “S.O.S. Animaux”, entre 1989 a 1992. Vegetariana, acaba de completar 80 anos, no meio de algumas polémicas por declarações consideradas extremistas, racistas e xenófobas.


Filmografia:

1952: Le Trou Normand, de Jean Boyer; Manina, la Fille sans Voiles, de Willy Rozier; Les Dents Longues (O Ambicioso), de Daniel Gélin; 1953: Le Portrait de Son Père, de André Berthomieu; Un Acte d'Amour ou Act of Love (Um Gesto de Amor), de Anatole Litvak; Si Versailles m'était conté... (Se Versalhes Falasse), de Sacha Guitry; 1954: Tradita, de Mario Bonnard; Le Fils de Caroline Chérie (As Mulheres e o Rebelde), de Jean-Devaivre; 1955: Futures Vedettes, de Marc Allégret; Doctor at Sea (Uma Garota a Bordo), de Ralph Thomas; Les Grandes Manœuvres (As Grandes Manobras), de René Clair; La Lumière d'en Face, de Georges Lacombe; Cette Sacrée Gamine (Uma Diabo de Saias), de Michel Boisrond; 1956: Mio figlio Nerone, de Steno; En Effeuillant la Marguerite (Desfolhando a Margarida), de Marc Allégret; Et Dieu… Créa la Femme (E Deus Criou a Mulher), de Roger Vadim; La Mariée est Trop Belle (A Noiva Era de Gritos), de Pierre Gaspard-Huit; Hélène de Troie (Helena de Tróia), de Robert Wise; 1957: Une Parisienne (Uma Parisiense), de Michel Boisrond; 1958: Les Bijoutiers du Clair de Lune (Vagabundos ao Luar), de Roger Vadim; En Cas de Malheur (Um caso perdido), de Claude Autant-Lara; 1959: La Femme et le Pantin (A Mulher e o Fantoche), de Julien Duvivier; Babette s'en va-t-en Guerre (Babette vai à guerra), de Christian-Jaque; Voulez-vous danser avec moi ? (Você Quer Dançar Comigo?), de Michel Boisrond; 1960: L'Affaire d'une Nuit, de Henri Verneuil; La Vérité (A Verdade), de Henri-Georges Clouzot; Le Testament d'Orphée, ou ne me demandez pas pourquoi!, de Jean Cocteua (não creditada);1961: La Bride sur le Cou (Uma Mulher Sem Freio), de Roger Vadim; Les Amours Célèbres (Amores Célebres), episódio “Agnès Bernauer”, de Michel Boisrond; 1962: Vie Privée ()Vida Privada, de Louis Malle; Le Repos du guerrier (O Repouso do Guerreiro), de Roger Vadim; 1963: Paparazzi, de Jacques Rozier; Le Mépris (O Desprezo), de Jean-Luc Godard; Une Ravissante Idiote (Uma Encantadora Idiota), de Édouard Molinaro; 1964: Marie Soleil, de Antoine Bourseiller (não creditado); 1965: Dear Brigitte, de Henry Koster; Viva María! (Viva Maria!), de Louis Malle; 1966: Masculin féminin, de Jean-Luc Godard; 1967: À Cœur Joie (Duas Semanas em Setembro), de Serge Bourguignon; 1968: Histoires extraordinaires (Histórias Extraordinárias), episódio “William Wilson”, de Louis Malle; Shalako (Shalako), de Edward Dmytryk; 1969: Les Femmes (As Mulheres), de Jean Aurel; 1970: L'Ours et la Poupée (O Urso e a Boneca), de Michel Deville; Les Novices (As Noviças), de Guy Casaril; 1971: Boulevard du Rhum (Bulevar do Rum), de Robert Enrico; Les Pétroleuses (As Rainhas do Petróleo), de Christian-Jaque; 1973: Don Juan 73 ou si Don Juan était une Femme (Se D. Juan Fosse Mulher), de Roger Vadim; L'Histoire très Bonne et très Joyeuse de Colinot Trousse-chemise (A Vida Alegre de Colinot), de Nina Companeez.

SESSÃO 1 - 4 DE JANEIRO DE 2016


À BEIRA DO ABISMO (1946)

"The Big Sleep" parte de um romance de Raymond Chandler e tem o argumento assinado por William Faulkner, além de Jules Furthman e Leigh Brackett. O realizador é Howard Hawks, que o dirigiu em 1946, dois anos depois de ter reunido pela primeira vez Humphrey Bogart e Lauren Bacall em “Ter ou não Ter”. Reunião explosiva que haveria de levar os dois actores a um casamento que duraria até à morte de Bogey, em 1957. Raymond Chandler, juntamente com Dashiell Hammett, são os maiores escritores de policiais deste período. Criando, entre outras personagens, dois detectives privados inesquecíveis, que Bogart interpretou de forma magistral: Philip Marlowe e Sam Spade. Ambos podem ser considerados os principais cultores do romance negro norte-americano, abastecendo abundantemente o cinema com obras que se tornariam clássicos deste género. No caso de Dashiell Hammett, “Relíquia Macabra” ou “The Thin Man” são dois bons exemplos. Quanto a Philip Marlowe, “À Beira do Abismo” e “A Dama do Lago” bastam para assegurar uma posição notória.
Howard Hawks não foi um realizador para se manter fiel a um género, preferindo vogar livremente ao sabor da inspiração e das encomendas de ocasião. Tinha o condão de transformar em obras de autor todos (ou quase todos) os filmes que dirigia. Comédias, policiais, westerns, ficção científica, dramas, filmes históricos contam-se na sua filmografia. “Ter ou não Ter” e “À Beira do Abismo” bastaram para lhe criar um lugar essencial na história do filme negro, ainda que não respeitasse integralmente as regras do género, coisa que aliás nunca respeitou em nenhum outro. Uma das suas características será mesmo essa indisponibilidade para respeitar regras. Raros são os seus filmes onde as relações humanas são convencionais. Casais bem casados quase não existem. Mas relações de amizade e camaradagem podem ver-se amiúde, ainda que sempre observadas por um prisma de certa originalidade. Mas violência, traições, hipocrisia, cinismo, um olhar distanciado sobre a realidade, dado através de uma ironia fina e uma crítica mordaz são constantes. As suas personagens gostam de acção, movimento, diálogos curtos, poucas explicações, entrechos complexos, por vezes confusos, dando a impressão de que o cineasta prefere aprofundar mais as figuras que as situações.

“À Beira do Abismo” é um excelente exemplo desta prática. A intriga é particularmente intrincada e, mesmo depois de duas ou três visões, o espectador ficará com dúvidas sobre o que aconteceu. Numa entrevista dada alguns anos depois da conclusão de “The Big Sleep”, Howard Hawks confessava que ainda não sabia quem teria assassinado um dos sete indivíduos transformados em cadáveres que aparecem ao longo da obra. Julgamos que se referia a um motorista que é dado como morto e de quem pouco mais se sabe. Não interessa, também. O que importa neste filme, que quase ninguém hesita em classificar como uma obra-prima, são realmente as personagens, entre elas a estranha relação que se estabelece entre Philip Marlowe (Humphrey Bogart) e Vivian Rutledge (Lauren Bacall), os diálogos, tensos, nervosos, irónicos, cínicos, o clima denso, pesado, soturno que rodeia esta história viciosa e violenta, bem como a arte da narração e a fotografia enevoada e cinzenta. De resto, a ambiguidade é a certeza com que nos defrontamos ao longo da projecção. Nunca se sabe bem quem é quem, o que o move, qual o passo seguinte. 
Philip Marlowe, detective privado, ex-polícia aposentado por não se dar bem com as regras do sistema, é convocado pelo velho general Sternwood (Charles Waldron) para o visitar na sua mansão em Los Angeles. Sternwood recebe-o numa estufa, com um calor sufocante, por entre orquídeas e cobertores que o envolvem na sua cadeira de rodas. Sternwood está doente, oferece uma bebida ao visitante, e bebe-a ele próprio com os olhos. Ele vive através dos outros. O encontro é para contratar Marlowe para este tentar resolver um caso de chantagem que tem como alvo a filha mais jovem do general, Carmen Sternwood (Martha Vickers), uma (pouco mais que adolescente) ninfomaníaca destrambelhada, perdida no jogo e na droga. Quando se apresta a deixar a mansão, Marlowe é interpelado pela outra filha de Sternwood, Vivian, que quer saber o que o pai tem em mente. Depois há um pouco de tudo, bibliotecas e livrarias que o são, e outras que o são apenas na aparência, casinos e jogo, ciladas e traições, casas isoladas onde acontecem estranhas sessões fotográficas e ocorrem assassinatos, com o defunto a aparecer e desaparecer, cenas de sedução e outras de violência verbal, Marlowe preso, Marlowe solto, Marlowe à frente dos acontecimentos, Marlowe perseguindo os acontecimentos e, sobretudo, Marlowe e Vivian a começar por se insultarem insolentemente e acabarem nos braços um do, outro (para o que os argumentistas e Howard Haws tiveram de alterar substancialmente o desfecho do romance de Raymond Chandler).


De resto, o filme tem situações magníficas de humor e invenção. Arthur Geiger, um dos suspeitos, possui uma livraria que Marlowe vista. É recebido por Agnes Louzier (Sonia Darrin), a quem pergunta por uma terceira edição de "Ben Hur", de 1860, com a errata na página 116, o que a empregada de Geiger desconhece, pois a livraria não é mais do que máscara para negócios ilícitos. E vão surgindo o desaparecido Sean Regan, o violento Joe Brody, o bem-apessoado Eddie Mars, que dirige o casino, e alguns cadáveres a entremearem as situações.
Howard Hawks serve-se de um estilo nervoso, sincopado, elíptico, numa narrativa enxuta, planos fixos, raros movimentos de câmara, apenas os necessários para acompanhar personagens, que todavia conferem uma ambiência sólida e inquietante, misteriosa e exaltante.
Curiosamente, Lauren Bacall não assina o retrato de uma mulher fatal habitual, mas de alguém de uma sensualidade furtiva, que se adivinha mais do que mostra (todo o contrário da oferecida irmã, que se atira literalmente para o colo de quem está mais próximo). Esta personagem, perante o distante e cínico Marlowe acaba por vivenciar momentos de alta voltagem erótica, o que não será de estranhar dado que o casal Bacall-Bogart vivia na vida real uma lua-de-mel de contagiante felicidade
Curiosidade: em 1978 surgiu uma nova versão de "The Big Sleep" (O Sono Derradeiro, em português), dirigida por Michael Winner, com Robert Mitchum, Sarah Miles, Richard Boone, entre outros. Uma desilusão.


À BEIRA DO ABISMO
Título original: The Big Sleep
Realização: Howard Hawks (EUA, 1946); Argumento: William Faulkner, Leigh Brackett, Jules Furthman, segundo romance de Raymond Chandler ("The Big Sleep"); Produção: Jack L. Warner, Howard Hawks; Música: Max Steiner; Fotografia (p/b): Sidney Hickox; Montagem: Christian Nyby; Direcção artística: Carl Jules Weyl,Max Parker; Decoração: Fred M. MacLean; Maquilhagem: Perc Westmore; Direcção de Produção: Eric Stacey; Assistentes de realização: Chuck Hansen, Robert Vreeland; Som: Robert B. Lee;  Efeitos especiais: Roy Davidson, Warren Lynch; Efeitos visuais: Paul Detlefsen; Companhia de produção: Warner Bros.-First National Pictures Inc.; Intérpretes: Humphrey Bogart (Philip Marlowe), Lauren Bacall (Vivian Rutledge), John Ridgely (Eddie Mars), Martha Vickers (Carmen Sternwood), Dorothy Malone (empregada de livraria), Peggy Knudsen (Mona Mars), Regis Toomey ( Inspector Bernie Ohls), Charles Waldron (Gen. Sternwood), Charles D. Brown (Norris), Bob Steele (Lash Canino), Elisha Cook Jr. (Harry Jones), Louis Jean Heydt (Joe Brody), Trevor Bardette, Joy Barlow, Max Barwyn, Deannie Best, Tanis Chandler, Jack Chefe, Joseph Crehan, Oliver Cross, Sonia Darrin, Carole Douglas, Jay Eaton, etc. Duração: 114 minutos; Distribuição em Portugal: Warner Bros.; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal:14 de Janeiro de 1948.


LAUREN BACALL (1924 - 2014)
Lauren Bacall, de seu nome verdadeiro Betty Joan Perske, nasceu a 16 de Setembro de 1924, na cidade de Nova Iorque, EUA. Oriunda de uma família de judeus, o pai, William Perske, nascido na Polónia, a mãe, Natalie Weinstein Bacal, na Roménia, a jovem Betty teve uma infância discreta, nos bairros de Nova Iorque, onde o pai era vendedor e a mãe secretária. Com seis anos de idade o divórcio do casal leva-a a ficar com a mãe. Estudou dança, foi modelo, chegou a ter aulas na Academia Americana de Artes Dramáticas e iniciou-se no teatro, na Broadway, em 1942, como o nome de Betty Bacall, na peça “Johnny Two By Four”. Uma foto sua, aparecida no “Harper's Bazaar”, interessou Slim Keith, mulher de Howard Hawks, que a mostrou ao cineasta, na altura em que este procurava actriz para o seu novo projecto, “Ter ou Não Ter”. Este convidou-a a fazer um teste em Hollywood, quando ela contava apenas 17 anos. Foi aceite, passou a usar Lauren como nome próprio, e foi baptizada por Hawks com o diminutivo de "Slim", que a torna célebre no seu filme de estreia. Hawks ensinou-a ainda a tirar partido do seu rosto e cabelo, o que permitiu criar o chamado “look” de Bacall que não mais a deixaria. Bogart, então casado com Mayo Methot, não resistiu ao pedido de lume de Bacall e pouco depois assobiava-lhe para sempre. Casaram. Formaram um dos casais mais sedutores de Hollywood. Depois do seu brilhante trabalho em “To Have and Have Not” (1944), surgiram ambos em “The Big Sleep” (1946), “Dark Passage” (1947) e “Key Largo” (1948), outros sucessos retumbantes. Iniciava-se assim uma carreira notável, no cinema, no teatro e na televisão. Os prémios e honrarias multiplicaram-se: em 1970, “Tony” para Melhor Actriz em “Applause”, e, em 1981, para “Woman of the Year”. Em 1997, em “The Mirror Has Two Faces”, de Barbra Streisand, ganhou um Globo de Ouro e um SAG e foi ainda nomeada para o Oscar de Melhor Actriz. Em 1993, conquistou um Globo de Ouro honorífico, pelo conjunto da sua obra, bem como um Oscar, em 2009. Escreveu “By Myself” (1978), Prémio Nacional para o Melhor Livro de Não-Ficção, “Now” (1994) e “By Myself and Then Some” (2004).


Filmografia

1944: To Have and Have Not (Ter ou não Ter), de Howard Hawks; 1945: Confidential Agent, de Herman Shumlin; 1946: The Big Sleep (À Beira do Abismo), de Howard Hawks; 1947: Dark Passage (O Prisioneiro do Passado), de Delmer Daves; 1948: Key Largo (Paixões em Fúria), de John Huston; 1950: Young Man with a Horn (Duas Mulheres e Dois Destinos), de Michael Curtiz; Bright Leaf (Fumos da Ambição), de Michael Curtiz; 1953: How to Marry a Millionaire (Como Se Conquista Um Milionário), de Jean Negulesco; 1954: Woman's World (O Mundo é das Mulheres), de Jean Negulesco; 1955: The Cobweb (Paixões Sem Freio), de Vincente Minnelli; Blood Alley (Aldeia em Fuga), de William A. Wellman; Producers' Showcase (série de TV) – episódio The Petrified Forest; 1956: Patterns (Os Gigantes Dominam), de Fielder Cook; Written on the Wind (Escrito no Vento), de Douglas Sirk; Blithe Spirit (teledramático); Ford Star Jubilee (série de TV) – episódio Blithe Spirit; 1957: Designing Woman (A Mulher Modelo), de Vincente Minnelli; 1958: The Gift of Love, de Jean Negulesco; 1959: North West Frontier (Sangue Sobre a Índia), de J. Lee Thompson; 1963: The DuPont Show of the Week (série de TV) – episódio A Dozen Deadly Roses; Dr. Kildare (série de TV) – episódio The Oracle; 1964: Shock Treatment, de Denis Sanders; Sex and the Single Girl (A Solteira e o Atrevido), de Richard Quine; Mr. Broadway (série de TV) – episódios Something to Sing About e Take a Walk Through a Cemetery; 1965: Bob Hope Presents the Chrysler Theatre (série de TV) – episódio Double Jeopardy; 1966: Harper (Harper, Detective Privado), de Jack Smight; 1973: Applause (teledramático); 1974: Murder on the Orient-Express (Um Crime no Expresso do Oriente), de Sidney Lumet; 1976: The Shootist (O Atirador), de Don Siegel; 1978: Perfect Gentlemen (teledramático); 1979: The Rockford Files (série de TV) – episódios Lions, Tigers, Monkeys and Dogs: 1 e 2; 1980: Health, de Robert Altman; 1981: The Fan (O Admirador), de Ed Bianchi; 1983: Parade of Stars (teledramático); 1988: Appointment with Death (Morte Entre as Ruínas), de Michael Winner; Mr. North (Um Homem de Sonho), de Danny Huston; 1989: Tree of Hands, de Giles Foster; Dinner at Eight (teledramático); 1990: Misery (Misery - O Capítulo Final), de Rob Reiner; The Real Story of the Three Little Kittens (video curta-metragem); A Little Piece of Sunshine (teledramático); 1991: All I Want For Christmas (Aventura num Natal), de Robert Lieberman; 1993: Screen One (série de TV) A Foreign Field, de Charles Sturridge; A Star for Two, de Jim Kaufman; Great Performances (série de TV) – episódio Leonard Bernstein: The Gift of Music – narradora; The General Motors Playwrights Theater (série de TV) – episódio The Parallax Garden; The Portrait (teledramático); 1994: Prêt-à-Porter (Pronto-a-Vestir), de Robert Altman; 1995: From the Mixed-Up Files of Mrs. Basil E. Frankweiler (teledramático); 1996: The Mirror Has Two Faces (As Duas Faces do Espelho), de Barbra Streisand; My Fellow Americans (Politicamente... Incorrecto!), de Peter Segal ; 1997: Le jour et la nuit, de Bernard-Henri Lévy ; 1998: Chicago Hope (série de TV) – episódios Absent Without Leave e Risky Business; 1999: Madeline: Lost in Paris, de Marija Miletic Dail (voz); Diamonds, de John Mallory Asher; The Venice Project, de Robert Dornhelm; Too Rich: The Secret Life of Doris Duke (teledramático); Presence of Mind, de Antoni Aloy; 2000: Scene by Scene (série de TV); 2003: The Limit, de Lewin Webb; Dogville (Dogville), de Lars von Trier; 2004: Amália Traïda, de Francesco Vezzoli (curta-metragem); Hauru no ugoku shiro (O Castelo Andante), de Hayao Miyazaki (voz); Birth (Birth - O Mistério), de Jonathan Glazer; 2005: Manderlay (Manderlay), de Lars von Trier; 2006: These Foolish Thing' (À Procura de Sucesso), de Julia Taylor-Stanley; 2007: The Walker (O Acompanhante), de Paul Schrader; 2008: Eve, de Natalie Portman (curta-metragem); 2008: Scooby-Doo and the Goblin King (vídeo) (voz); 2009: Wide Blue Yonder, de Robert Young; 2012: The Forger, de Lawrence Roeck; 2012: Ernest & Célestine, de Stéphane Aubier, Vincent Patar e Benjamin Renner (voz); 2014: Family Guy (série de TV) episódio Mom's the Word (voz).