domingo, 14 de agosto de 2016

SESSÃO 37: 3 DE OUTUBRO DE 2016


IRMA LA DOUCE (1963)

Billy Wilder é definitivamente um dos maiores realizadores que cresceram no cinema norte-americano. Nascido ainda no tempo do Império Austro-húngaro, em 1906, numa localidade que hoje pertence à Polónia, e falecido em Los Angeles em 2002, Billy Wilder parecia destinado a uma carreira de advogado em Viena, quando foi apanhado pelo jornalismo, viajando depois para Berlim. Começou a carreira no cinema como argumentista, e, tendo em conta a sua ascendência judaica, achou melhor emigrar depois de Hitler chegar ao poder. Em Hollywood, apesar de não dominar o inglês, vingou rapidamente, inicialmente a escrever argumentos com Charles Brackett. Foram autores de comédias como “Ninotchka” (1939) ou “Bola de Fogo” (1941). A carreira prosseguiu sempre com obras de reconhecida valia, como “Cinco Covas no Egipto” (1943), “Pagos a Dobrar” (1944) “Farrapo Humano” (1945), “Crepúsculo dos Deuses” (1950), “O Grande Carnaval” (1951), “O Pecado Mora ao Lado” (1955), “Quanto Mais Quente Melhor” (1959), “O Apartamento” (1960) ou “Irma La Douce” (1963) todas elas com vários prémios no activo e sendo consideradas das melhores que a cinematografia mundial produziu nesse período.
Bateu-se bem em quase todos os géneros, marcando uma sólida posição de autor, mas foi na comédia que terá levado mais longe algumas das suas características, um humor cáustico, irreverente para com as instituições, moralmente cínico, algo perverso, mesmo quando o fundo é de uma invejável moralidade. Bom-vivant, isso mesmo fica testemunhado nas suas películas, onde se enfatizam os prazeres da vida. “Irma, La Douce” é um bom exemplo.
O argumento é do próprio Billy Wilder, de colaboração com I.A.L. Diamond, que adaptam uma peça teatral de Alexandre Breffort. Como em muitas outras obras de Billy Wilder, esta é uma história que vive do disfarce, de alguém a fazer-se passar por outro. A acção passa-se em Paris, num bairro popular, uma rua bem povoada de prostitutas, um café/taberna onde se encontram os chulos a jogar enquanto esperam que as raparigas lhes tragam da rua a mesada, uma pensão de grande rotação, a azáfama de todos os dias e de todas as noites, os polícias de giro que fecham os olhos e arrecadam as gorjetas no chapéu deixado sobre o banco, tudo a correr sobre rodas até ao dia em que aparece um novo polícia, Nestor Patou (Jack Lemmon), que desconhece as regras do jogo e resolve actuar segundo os regulamentos e a moral instituída. Claro que não resulta bem, será expulso da polícia e, com alguma sorte pelo seu lado, acaba por ser designado o nº 1 da associação dos chulos do bairro e terá como prémio Irma, La Douce, a prostituta preferida da zona. Mais coisa, menos coisa e muitos ciúmes pelo meio, Nestor acaba por se transformar em Lord X, que todas as semanas desce de Londres à cidade para estar com Irma e ofertar-lhe 500 francos a troco de um jogo de cartas por noite. Não interessa aprofundar mais a intriga, este início já dá para perceber que não é pelas boas práticas que se chega ao céu e há que saber viver numa sociedade onde todos traficam. Só não evolui na vida quem não se adapta às normas vigentes, que não são morais, nem justas, mas são as que há e as que melhor rendem no mercado. O ingénuo bem-intencionado é expulso desta sociedade, mas se resolve aderir aos maus costumes passa a number one.


A crítica de Billy Wilder não pode ser mais contundente, o seu humor é deliciosamente perverso, a direcção do filme desenvolve um cómico de situação e de diálogo cheio de subtendidos, mas sempre de uma elegância e subtileza de realçar. Todo o quadro de Paris boémio é magnífico de autenticidade, apesar de rodado quase sempre em estúdio, nos EUA, e a construção de personagens e de situações, deliciosa. Há um gag, um entre muitos possíveis de citar, memorável. O dono do café, sempre que há uma troca de argumentos mais violenta, vai buscar o sifão para reanimar o cliente entorpecido, lançando-lhe um jacto de água à distância. A prática torna-se de tal forma vulgar que às tantas já são os clientes a servirem-se do sifão. De resto, a engenhosa troca de Nestor por Lord X, com recurso a um elevador monta-cargas é igualmente deliciosa. Uma grande comédia que permite aos actores trabalhos condizentes. Jack Lemmon é, como sempre, brilhante, ele que foi um fiel colaborador de Wilder, e Shirley MacLaine mostra-se num dos grandes papéis da sua carreira. Aqui merecedor de mais uma nomeação para o Oscar de Melhor Actriz. Uma notável comédia de um mestre.

IRMA LA DOUCE
Título original: Irma la Douce
Realização: Billy Wilder (EUA; 1963); Argumento: Billy Wilder, I.A.L. Diamond, segundo peça de teatro de Alexandre Breffort; Produção: Edward L. Alperson, I.A.L. Diamond, Doane Harrison, Billy Wilder, Alexandre Trauner; Música: André Previn; Fotografia (cor): Joseph LaShelle; Montagem: Daniel Mandell; Casting: Lynn Stalmaster; Direcção artística: Alexandre Trauner; Decoração: Maurice Barnathan, Edward G. Boyle; Guarda-roupa: Orry-Kelly; Maquilhagem: Emile LaVigne, George Masters, Alice Monte, Harry Ray, Frank Westmore; Direcção de Produção: Allen K. Wood; Assistentes de realização: Hal W. Polaire, Christian Ferry; Departamento de arte: Frank Agnone, Arden Cripe, Hub Braden, Harold Michelson; Som: Gilbert D. Marchant, Robert Marti; Efeitos especiais: Milt Rice; Companhias de produção: The Mirisch Corporation, Phalanx Productions; Intérpretes: Jack Lemmon (Nestor Patou / Lord X), Shirley MacLaine (Irma La Douce), Lou Jacobi (Moustache), Bruce Yarnell (Hippolyte), Herschel Bernardi (Insp. Lefevre), Hope Holiday (Lolita), Joan Shawlee (Amazon Annie), Grace Lee Whitney (Kiki, a cossaca), Paul Dubov (Andre), Howard McNear, Cliff Osmond, Diki Lerner, Herb Jones, Ruth Earl, Jane Earl, Tura Satana, Lou Krugman, James Brown, Bill Bixby, John Alvin, Susan Woods, Harriette Young, Sheryl Deauville, Billy Beck, Jack Sahakian, Edgar Barrier, James Caan (soldao com rádio), Don Diamond, Paul Frees, Joe Gray, Louis Jourdan (Narrador), Ralph Moratz, Moustache, Doye O'Dell, Joe Palma, Richard Peel, etc. Duração: 147 minutos; Distribuição em Portugal: MGM (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 27 de Junho de 1974.


SHIRLEY MACLAINE (1934 - ?)
Shirley MacLaine, cujo nome de baptismo é Shirley MacLean Beaty, nasceu a 24 de Abril de 1934, em Richmond, Virginia, EUA. Filha de Ira Owens Beaty, um músico de origem irlandesa, e de Kathlyn Corinne MacLean, bailarina canadiana; irmã do actor e realizador Warren Beatty; casada, desde 1954 até 1982, com o realizador e produtor Steve Parker, Shirley iniciou-se como aluna de bailado na Washington School of Ballet. Diplomada, passou a viver em Nova Iorque, onde começa a aparecer em musicais da Broadway, como no sucesso de Richard Rodgers e Oscar Hammerstein II, "Me and Juliet" e, seguidamente, em "The Pajama Game", sendo posteriormente convidada pelo produtor Hal B. Wallis para viajar até Hollywood, onde se estreia em “O Terceiro Tiro”, de Alfred Hitchcock (1955). Surge noutros filmes, como na superprodução “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias” (1956), ou no excelente “Deus Sabe Quanto Amei”, de Minnelli (1958), onde recebe a primeira nomeação para o Oscar de Melhor Actriz. Em 1960, volta a ser nomeada por “O Apartamento”, e pouco depois, terceira nomeação por “Irma la Douce” (1963). In 1969, dirigida pelo amigo Bob Fosse, interpreta um musical, “Sweet Charity - A Rapariga que Queria Ser Amada”. Estreia-se como realizadora em 1975, com um documentário, rodado na China, “ The Other Half of the Sky: A China Memoir”, que é nomeado para o Oscar da categoria. Como actriz, nova nomeação em 1977, com “A Grande Decisão”. Finalmente ganha o Oscar de Melhor Actriz com “Laços de Ternura” (1983), e arrebata o Festival de Veneza com “Madame Sousatzka, a Professora” (1988). Depois de muitos outros sucessos, regressa à realização em 1998, com uma ficção, “Bruno” (2000). Entretanto, apareceu em diversas séries de televisão e telefilmes. Em 2015 tem em pré-produção alguns trabalhos. Shirley conta com uma Estrela no Hall of Fame, de Hollywood, em 1615 Vine Street.


Filmografia:
Como Actriz / Cinema: 1955: The Trouble with Harry (O Terceiro Tiro), de Alfred Hitchcock; Artists and Models (Pintores e Raparigas), de Frank Tashlin; 1956: Around the World in Eighty Days (A Volta ao Mundo em 80 Dias), de Michael Anderson; 1958: The Sheepman (O Irresistível Forasteiro), de George Marshall; The Matchmaker (Viva o Casamento), de Joseph Anthony; Hot Spell (Feitiço Ardente), de Daniel Mann; Some Came Running (Deus Sabe Quanto Amei), de Vincente Minnelli; 1959: Ask Any Girl (O Que Elas Querem é Casar), de Charles Walters; Career (Os Caminhos da Ambição), de Joseph Anthony; 1960: Can-Can (Can-Can), de Walter Lang; The Apartment (O Apartamento), de Billy Wilder; Ocean's Eleven (Os Onze de Oceano), de Lewis Milestone; 1961: All in a Night's Work (A História daquela Noite), de Joseph Anthony; Two Loves (Dois Amores), de Charles Walters; The Children's Hour (A Infame Mentira), de William Wyler; 1962: My Geisha (A Minha Gueixa), de Jack Cardiff; Two for the Seesaw (Baloiço Para Dois), de Robert Wise; 1963: Irma la douce (Irma la Douce), de Billy Wilder; 1964: What a Way to Go ! (Ela e os Seus Maridos), de J. Lee Thompson; The Yellow Rolls-Royce (O Rolls-Royce Amarelo), de Anthony Asquith; 1965: John Goldfarb, Please Come Home (Um Americano no Harém), de J. Lee Thompson; 1966: Gambit (Ladrão Roubado), de Ronald Neame; 1967: Woman Times Seven (Sete Vezes Mulher), de Vittorio de Sica; 1968: The Bliss of Mrs. Blossom (A Felicidade da Senhora Blossom), de Joseph McGrath; 1969: Sweet Charity (Sweet Charity - A Rapariga que Queria Ser Amada), de Bob Fosse; 1970: Two Mules for Sister Sara (Os Abutres Têm Fome), de Don Siegel; 1971: Desperate Characters (Um Casal Desesperado), de Frank D. Gilroy; 1972: The Possession of Joel Delaney (A Obsessão de Joel Delaney), de Waris Hussein; 1977: The Turning Point (A Grande Decisão), de Herbert Ross; 1979: Being There (Bem-Vindo Mr. Chance), de Hal Ashby; 1980: Loving Couples (Amigos e Amantes), de Jack Smight; A Change of Seasons (A Aluna e o Professor), de Richard Lang; 1983: Terms of Endearment (Laços de Ternura), de James L. Brooks; 1984: Cannonball Run II (A Corrida Mais Louca do Mundo II), de Hal Needham; 1988: Madame Sousatzka (Madame Sousatzka, a Professora), de John Schlesinger; 1989: Steel Magnolias (Flores de Aço), de Herbert Ross; 1990: Waiting for the Light, de Christopher Monger; Postcards from the Edge (Recordações de Hollywood), de Mike Nichols; 1992: Used People (Um Certo Outono), de Beeban Kidron; 1993: Wrestling Ernest Hemingway), de Randa Haines; 1994: Guarding Tess (O Agente Secreto), de Hugh Wilson; 1996: Mrs. Winterbourne (O Comboio do Destino), de Richard Benjamin; The Evening Star (Lágrimas ao Entardecer), de Robert Harling; 1997: A Smile Like Yours (Bebé por Encomenda), de Keith Samples; 2000: Bruno, de Shirley MacLaine; 2003: Carolina, de Marleen Gorris; 2005: Bewitched (Casei com uma Feiticeira), de Nora Ephron; In Her Shoes (Na Sua Pele), de Curtis Hanson; Rumor Has It (Dizem por Aí...), de Rob Reiner; 2007: Closing the Ring (O Elo do Amor), de Richard Attenborough; 2010: Valentine's Day (Dia dos Namorados), de Garry Marshall; 2011: Anyone's Son (Morre... e Deixa-me em Paz), de Danny Aiello; 2012: Bernie, de Richard Linklater; 2013: Mother Goose!; Elsa & Fred, de Michael Radford; The Locals; The Secret Life of Walter Mitty (A Vida Secreta de Walter Mitty), de Ben Stiller; 2015: Wild Oats, de Andy Tennant; Men of Granite, de Dwayne Johnson-Cochran (pré-produção); Jim Button, de Dennis Gansel (anunciado). 

Televisão: 1955: Shower of Stars (série de TV); 1958: The Sid Caesar Show (série de TV); 1971-1972: Shirley's World, de Ray Austin (série de TV); 1995: The West Side Waltz (A Valsa da Vida), de Ernest Thompson (telefilme); 1998: Stories from My Childhood (série de TV); 1999: Joan of Arc (Joana de Arc - A Donzela da Lorena), de Christian Duguay (telefilme); 2001: These Old Broads, de Matthew Diamond (telefilme); 2002: Hell on Heels: The Battle of Mary Kay, de Ed Gernon (telefilme); 2002: Salem Witch Trials, de Joseph Sargent (telefilme); 2008: Coco Chanel, de Christian Duguay (telefilme); 2008: Anne of Green Gables: A New Beginning, de Kevin Sullivan (telefilme); 2012-2013: Downton Abbey, de Julian Fellowes (série de TV); 2014: Glee (série de TV).
Como realizadora: 1975: The Other Half of the Sky: A China Memoir (documentário); 2000: Bruno.


SESSÃO 36: 26 DE SETEMBRO DE 2016


MAMMA ROMA (1962)

Pier Paolo Pasolini, nascido em 1922, em Bolonha, e falecido em 1975, em Roma, começou por ser conhecido como poeta e romancista, antes de entrar no cinema, pela porta do argumento e da assistência de realização. Colaborou em muitas obras de vários cineastas, antes de se estrear na realização com a adaptação de um romance seu, “Accatone”, em 1961. Integrou-se assim na nova vaga de realizadores que surgiu nos anos 60, reclamando-se um pouco da tradição neorrealista, mas instilando-lhe um novo sangue. Bertolucci, Francesco Rosi, Masseli, Gillo Pontecorvo, entre muitos outros, foram alguns desses nomes que se afirmaram num cinema extremamente politizado, de crítica e denúncia de uma sociedade em crise.
“Mamma Roma” é a sua segunda longa-metragem, e uma das em que é mais visível a influência directa do neorrealismo. Depois de “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964) e de “Passarinhos e Passarões” (1966), segue-se um período em que o cineasta cruza a mitologia clássica greco-latina com uma teorização marxista, em títulos como “Rei Édipo” (1967), “Teorema” (1068), “Pocilga” ou “Medeia” (ambos de 1969), para mais tarde se notabilizar com algumas adaptações de clássicos da literatura, como, em 1971, “Decameron”, em 1972, “Os Contos de Canterbury”, em 1974, “As Mil e Uma Noites” e, finalmente, em 1975, “Salò ou Os 120 Dias de Sodoma”. Homossexual, seria assassinado em circunstâncias muito obscuras, no dia 2 de Novembro de 1975, com 53 anos, nos arredores de Roma, em Ostia. Membro do partido comunista entre 1947 e 1949, ao que consta foi expulso em função da sua homossexualidade. Esta sensação de exclusão terá marcado toda a sua vida e toda a obra. 
Voltando a “Mamma Roma”, regressamos às origens do neorrealismo, a Anna Magnani e a “Roma, Cidade Aberta”. Desta feita, não há no horizonte a II Guerra Mundial, mas Anna Magnani continua uma romana típica, papel de que ela raramente se afastou ao longo de toda a sua filmografia.


No filme de Pasolini ela é prostituta, romana, que tem um filho a crescer na província, num albergue de assistência social, mas que ela tenta trazer para junto de si para o promover, para oferecer-lhe uma vida melhor que a sua. Tal como outras fizeram antes de si, Mamma Roma troca a vida nas esquinas das avenidas suburbanas de Roma por um lugar de venda de peixe num mercado. Afasta-se do chulo que não vê com bons olhos esta decisão, mas ela reúne economias para uma casa nova num bairro dos arredores da grande metrópole. Ela agora procura a respeitabilidade que lhe permita educar o filho, que possibilite ao adolescente um bom emprego, que lhe ofereça a felicidade que ela nem sempre terá tido. Este é um sonho de todas as mães, que esta romana tenta realizar. Mas as intenções são umas, os caminhos da realidade são outros.
Para si, o seu filho Ettore (Ettore Garofolo) é o melhor filho do mundo, o mais bonito, e se, uma vez por outra, ele e se mostra insolente, ela desculpa-o. Até que se prende de amores com uma jovem muito oferecida, que o leva à pequena delinquência e, finalmente, ao hospital. Pasolini sempre foi um poeta, escreveu um texto muitas vezes citado sobre a poesia no cinema, 'Il cinema di poesia' (1965), e tinha uma teoria que o guiava na sua obra fílmica, “o cinema é uma linguagem não convencional e não simbólica.” O cinema deve portanto expressar a realidade através da realidade. “Mamma Roma” procura exemplificar essa preocupação com a realidade, e com um cinema que se afaste dos meios opulentos e dos estúdios. O seu cinema era, por estes dias, essencialmente um cinema poético e pobre.
Toda a obra decorre em cenários naturais, com um ou outro actor profissional (essencialmente Anna Magnani), sem efeitos, quase sempre com pouca luz artificial, buscando a autenticidade da realidade. Por vezes a poesia irrompe com a brutalidade do destino das pobres gentes e, neste particular, toda a sequência final de “Mamma Roma” é sublime, de cortar a respiração, e de subitamente se surpreender a respiração de um grande cineasta. Curiosamente, responde à sequência inicial, de um casamento, onde se ouvem algumas canções populares, cujos versos evocam momentos das vidas de alguns dos protagonistas. Anna Magnani, como sempre, é absolutamente magistral, por vezes excessiva e tonitruante, por vezes secreta e intimista quando é necessário.

MAMA ROMA
Título original: Mamma Roma
Realização: Pier Paolo Pasolini (Itália, 1962); Argumento: Pier Paolo Pasolini; Produção: Alfredo Bini; Fotografia (p/b):  Tonino Delli Colli; Música: Carlo Rustichelli; Montagem: Nino Baragli; Direcção artística: Flavio Mogherini; Decoração: Massimo Tavazzi; Maquilhagem: Marcello Ceccarelli, Amalia Paoletti; Direcção de Produção:  Eliseo Boschi, Fernando Franchi; Assistente de realização: Carlo Di Carlo; Som: Renato Cadueri, Leopoldo Rosi; Companhia de produção: Arco Film; Intérpretes: Anna Magnani (Mamma Roma), Ettore Garofolo (Ettore), Franco Citti (Carmine), Silvana Corsini (Bruna), Luisa Loiano (Biancofiore), Paolo Volponi (Padre), Luciano Gonini (Zacaria), Vittorio La Paglia (Pellissier), Piero Morgia (Piero), Franco Ceccarelli (Carletto), Marcello Sorrentino (Tonino), Sandro Meschino (Pasquale), Franco Tovo (Augusto), Pasquale Ferrarese (Lino), Leandro Santarelli (Begalo), Emanuele Di Bari, Antonio Spoletini, Nino Bionci, Nino Venzi, Maria Bernardini, Santino Citti, Renato Montalbano, Lamberto Maggiorani, Renato Capogna, Mario Cipriani, Renato Troiani, etc. Duração: 106 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Filmes Castello Lopes Multimédia; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 10 de Janeiro de 1992.


ANNA MAGNANI (1908-1973)
Youri Gagarine, o internauta soviético, quando realizou o primeiro voo espacial, em Abril de 1961, saudou “a fraternidade entre os homens, o mundo das artes e Anna Magnani”. A actriz estava no auge da sua celebridade internacional. Nasceu em Roma (obviamente!), a 7 de Março de 1908 e viria a falecer na mesma cidade, a 26 de Setembro de 1973, vítima de um cancro no pâncreas. Foi seguramente uma das maiores actrizes do seu tempo e estabeleceu uma marca que ficara para sempre: foi a primeira actriz de língua não inglesa a ganhar um Oscar de Melhor Actriz, pela sua interpretação em “A Rosa Tatuada”, de Daniel Mann (1955), filme baseado na obra de Tennessee Williams, em que ela interpretava a figura de uma viúva siciliana a viver nos EUA, num típico bairro italiano, reverenciando a memória do marido.
Filha natural, abandonada pela mãe, foi educada por uma avó, em Roma, e posteriormente num convento. A carreira artística começou-a no musichall, em cabarets e night-clubs como cantora, ingressando depois na Academia de Arte Dramática de Roma. Viajou por toda a Itália em pequenas companhias teatrais e, em 1928, estreia-se no cinema, num filme ainda mudo, onde aparece pouco e nem sequer é referida no genérico. O filme chamava-se “Scampolo” (A Migalha), de Augusto Genina. Em 1935, casa com Goffredo Alessandrini, que a incluiu no elenco de “Cavalleria”, no ano seguinte. O casamento dura até 1950. Entretanto, em 1941, atinge a notoriedade como actriz no filme “Teresa Venerdi”, de Vittorio De Sica. Em 1942, tem um filho do actor Massimo Serrato. Mas todo o seu génio é revelado em 1945, na obra de Roberto Rossellini, “Roma, Città Aperta”. Por essa altura, mantém uma relação sentimental como o realizador, que só termina com a aparição de Ingrid Bergman. Daí em diante continua a trabalhar no cinema, no teatro, na televisão, em Itália e nos EUA, onde ganha um Oscar e volta a ser nomeada, em 1958, pelo seu trabalho em “Wild Is the Wind”. A sua popularidade é imensa e em Itália é conhecida por “La Magnani” ou “Nannarella”. Trabalha sob as ordens de alguns dos maiores realizadores mundiais: Rossellini, Luchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Jean Renoir, Claude Autant-Lara, Daniel Mann, George Cukor, Sidney Lumet ou Stanley Kramer. Ela é o rosto de Roma, no filme de Federico Fellini, “Roma de Fellini”. Coleccionou inúmeros prémios em Festivais italianos e internacionais e tem uma estrela no Walk of Fame, em Los Angeles, desde 1960, frente ao nº 6381 do Hollywood Boulevard.


Filmografia

Como actriz: 1928: Das Mädchen der Straße ou Scampolo (A Migalha), de Augusto Genina (não creditada); 1934: Tempo massimo de Mario Mattoli; La cieca di Sorrento, de Nunzio Malasomma; 1935: Quei due, de Gennaro Righelli; 1936: Trenta secondi d'amore, de Mario Bonnard; Cavalleria, de Goffredo Alessandrini; 1938: La Principessa Tarakanova, de Fedor Ozep e Mario Soldati; 1940: Una lampada alla finestra de Gino Talamo; 1941: La fuggitiva de Piero Ballerini; 1941: Teresa venerdì (Uma Rapariga às Direitas) de Vittorio De Sica; 1942: Finalmente soli, de Giacomo Gentilomo; La fortuna viene dal cielo, de Ákos Ráthonyi; 1943: L'avventura di Annabella (A Aventura de Annabella), de Leo Menardi; La vita è bella, de Carlo Ludovico Bragaglia; 1943: Campo de' fiori, de Mario Bonnard; Gli Assi della risata de Roberto Bianchi e Montero Guido Brignone (episódio Il mio pallone); L'ultima carrozzella, de Mario Mattoli; 1944: Il fiore sotto gli occhi, de Guido Brignone; 1945: Quartetto pazzo de Guido Salvini; 1945: Roma, città aperta (Roma, Cidade Aberta), de Roberto Rossellini; 1945: Abbasso la miseria! (Abaixo a Tristeza) de Gennaro Righelli; 1946: Un uomo retorna, de Max Neufeld; Lo sconosciuto di San Marino, de Michal Waszynski; Avanti a lui tremava tutta Roma, de Carmine Gallone; Il bandito (O Bandido), d'Alberto Lattuada; Abbasso la ricchezza! (Basta de Dinheiro!) de Gennaro Righelli; Assunta Spina de Mario Mattoli; 1947: L'onorevole Angelina (A Zaragateira), de Luigi Zampa; 1948: Molti sogni per le strade (Sonhando Pelo Caminho), de Mario Camerini; L'amore, de Roberto Rossellini; I - Una voce umana; II - Il miracolo); 1950: Vulcano (Vulcão), de William Dieterle; 1951: Bellissima (Bellisima), de Luchino Visconti; 1952: Camicie rosse, de Goffredo Alessandrini e Francesco Rosi; 1953: Carrozza d'Oro (A Comédia e a Vida), de Jean Renoir; Siamo donne (Nós, as Mulheres), de vários (episódio Anna Magnani de Luchino Visconti; 1955: Carosello del varietà, de Aldo Bonaldi e Aldo Quinti; The Rose Tattoo (A Rosa Tatuada), de Daniel Mann; 1956: I pinguini ci guardano (voz); 1957: Suor Letizia (Quando os Anjos Não Voam), de Mario Camerini; Wild is the Wind (Selvagem é o Vento), de George Cukor; 1958: Nella città dell'inferno (As Grades do Inferno), de Renato Castellani; 1959: The Fugitive Kind (O Homem na Pele da Serpente), de Sidney Lumet; 1960: Risate di gioia (O Ladrão Apaixonado), de Mario Monicelli; 1962: Mamma Roma (Mamma Roma), de Pier Paolo Pasolini; 1963: Le magot de Josefa ou Pila della Peppa, de Claude Autant-Lara; 1964: ...e la donna creò l'uomo (Coração cheio, bolsos vazios), de Camillo Mastrocinque; 1967: Made in Italy (Na Itália é assim), de Nanni Loy (episódio La famiglia); 1969: The Secret of Santa Vittoria (O Segredo de Santa Vitória), de Stanley Kramer; 1943: un incontro d'Alfredo Giannetti (TV); 1970: La sciantosa, de Alfredo Giannetti (TV); 1870 (Correva l'anno di grazia 1870) de Alfredo Giannetti; (TV); 1971: Tre donne (episódios L'automobile, de Alfredo Giannetti); 1943: Un incontro e La sciantosa (TV); 1972: Fellini Roma (Roma de Fellini), de de Federico Fellini; 1979: Io sono Anna Magnani, de Chris Vermorcken (documentário); 2000: Anna, telefilme de Giorgio Capitani.

SESSÃO 35: 19 DE SETEMBRO DE 2016


JULES E JIM (1962)

François Truffaut, depois de anos como crítico de referência nos “Cahiers du Cinema”, depois de ter passado pela curta-metragem e de se ter estreado na longa, como realizador com o belíssimo “Os 400 Golpes” (1959), a que se seguiria “Disparem sobre o Pianista” (1961), lançava-se num projecto que lhe era muito caro há já algum tempo, precisamente adaptar ao cinema um romance de um quase desconhecido na época, Henri-Pierre Roché, cujo título era “Jules et Jim”. Sabe-se agora que o romance era em grande parte autobiográfico e que o autor o escreveu já muito depois dos sessenta anos de idade. Mas a história reportava ao início do século XX, quando Henri-Pierre Roché encontra em Paris um poeta e escritor alemão, Franz Hessel. Estamos em 1906 e ambos se tornam grandes amigos. Entre os dois surge Helen, uma jovem alemã ligada igualmente à literatura, por quem ambos se apaixonam. Entretanto, surge a I Guerra Mundial, os dois amigos são separados pelo conflito, cada um de um dos lados das barricadas, e, findo o conflito, reencontram-se: Helen tinha casado com Franz, mas acabará por amar Henri-Pierre. Este recordará toda a história desta invulgar “ménage à trois” no romance e igualmente em volumes de diários de memórias. No romance, Henri-Pierre Roché chamar-se-á Jim, Franz Hessel será Jules e Helen passa a ser conhecida por Catherine.
Quando era apenas crítico, Truffaut lera o livro levado pelo título, ficara deslumbrado com a escrita e o tema, pouco habitual na época, e pensou desde logo que gostaria de dele retirar um filme. Se o romance era autobiográfico, o filme também dizia muito ao realizador, que não se sentiu com coragem para se abalançar logo por este projecto. O êxito de “Os 400 Golpes” deixou-o mais tranquilo. Falou com o escritor que aceitou de bom grado o desafio (Truffaut convidara-o a escrever os diálogos, o que não aconteceu porque entretanto Roché morreu) e, um dia, ao cruzar-se com o deslumbrante charme de Jeanne Moreau, percebeu de imediato que ela seria o terceiro vértice do triângulo. Assim foi. Escrito o argumento, de colaboração com Jean Gruault, “Jules et Jim” passa a filme e rapidamente se transforma num dos maiores ícones da “nouvelle vague” e de todo o cinema francês. Por diversas razões.
Antes de mais pelo tema que se ainda hoje pode parecer amoral, na época resultou escandaloso e funcionou seguramente como um dos elementos essenciais para consolidar em imagens a rebeldia da juventude desse tempo, a sua ânsia de ultrapassar a hipocrisia dominante, em criar novos formas de convivência, novos laços sentimentais, em libertar a sexualidade e a mulher desse revelador conservadorismo predominante.


Para atingir este desígnio, Truffaut necessitava de um estilo livre, de uma narrativa que acompanhasse as propostas do próprio texto. “Jules e Jim”, filme, é tudo isso, pela liberdade com que movimenta a câmara, com que acompanha as personagens e as envolve, pela ruptura que impõe com a escrita tradicional, pela própria natureza da adaptação literária por que opta e que se afasta muito das adaptações normalizadas do cinema de então. Curiosamente, neste aspecto, há que notar que esta adaptação, sendo muito “cinematográfica”, muito ligada à imagem e ao som, nunca deixa de ter um pendor literário, com o recurso ao texto off, com a inclusão de longos diálogos retirados do romance, com a invocação de obras literárias, com o ambiente poético de que se alimenta. O filme é um grito de liberdade que tem ecoado pelos tempos.
Creio que não se pode analisar (ou mesmo acompanhar) “Jules e Jim” de uma forma puramente racional. As incongruências iriam multiplicar-se. Não é essa a intenção dos autores. “Jules e Jim” é um manifesto poético onde se entra sem preconceitos e onde nos deixamos conduzir pelas correrias do trio pelas pontes metálicas, pelas voltas de bicicleta em paisagens bucólicas, pelas ternuras dos olhares ou pelas belas palavras de uma canção emblemática cantada por Jeanne Moreau e que para sempre ficou como símbolo desta belíssima obra de amor, dedicada ao amor e à amizade (1).
Um outro aspecto a referir é o facto de nunca em “Jules et Jim” existir um olhar moralista sobre as personagens. Claro que o final trágico pode levar a supor-se uma posição contrária ao estilo de vida das três figuras centrais, mas creio que essa não é a intenção de Truffaut. Jules, Jim e Catherine vivem uma existência que se diria marginal ao pecado. Eles são a inocência e uma certa pureza que se identifica com a natureza onde a acção decorre. Não são eles que correm para a tragédia, mas  esta que se impõe com as suas regras.  
Excelentes as interpretações, com óbvio particular destaque para Jeanne Moreau, que aqui ascendia ao pedestal das divas. O filme é, todavia, um espelho de Truffaut, dos seus temas favoritos e dos seus fantasmas, que mais tarde o irá prolongar em muitas outras obras suas, como “Duas Inglesas e o Continente”, adaptado do mesmo Henri-Pierre Roché, em “Grau de Destruição”, onde irá desenvolver uma das suas obsessões, os livros queimados pelas ditaduras, já aqui anunciados com imagens de actualidades, “O Último Metro”, que relança o tema do trio amoroso, e em tantos outros.

(1) A canção chama-se “Le Tourbillon de La Vie” e terá ajudado a criar a imortalidade do compositor Georges Delerue, um dos colaboradores regulares de Truffaut. Aqui fica o poema que ilustra bem o espírito do filme:
“Elle avait des bagues à chaque doigt, / Des tas de bracelets autour des poignets, / Et puis elle chantait avec une voix /Qui, sitôt, m'enjôla.
“Elle avait des yeux, des yeux d'opale, / Qui me fascinaient, qui me fascinaient. / Y avait l'ovale de son visage pâle / De femme fatale qui m'fut fatale {2x}.
“On s'est connus, on s'est reconnus, / On s'est perdus de vue, on s'est r'perdus d'vue / On s'est retrouvés, on s'est réchauffés, / Puis on s'est séparés.
“Chacun pour soi est reparti. / Dans l'tourbillon de la vie / Je l'ai revue un soir, hàie, hàie, hàie /Ça fait déjà un fameux bail {2x}.
“Au son des banjos je l'ai reconnue. / Ce curieux sourire qui m'avait tant plu. / Sa voix si fatale, son beau visage pâle / M'émurent plus que jamais.
“Je me suis soûlé en l'écoutant. / L'alcool fait oublier le temps. / Je me suis réveillé en sentant / Des baisers sur mon front brûlant {2x}.
“On s'est connus, on s'est reconnus. / On s'est perdus de vue, on s'est r'perdus de vue / On s'est retrouvés, on s'est séparés. / Dans le tourbillon de la vie.
“On a continué à toumer / Tous les deux enlacés / Tous les deux enlacés. / Puis on s'est réchauffés.
“Chacun pour soi est reparti. / Dans l'tourbillon de la vie. / Je l'ai revue un soir ah là là / Elle est retombée dans mes bras.
“Quand on s'est connus, / Quand on s'est reconnus, / Pourquoi se perdre de vue, / Se reperdre de vue ?
“Quand on s'est retrouvés, / Quand on s'est réchauffés, / Pourquoi se séparer ? /  Alors tous deux on est repartis
“Dans le tourbillon de la vie / On à continué à tourner / Tous les deux enlaces / Tous les deux enlaces.”

JULES E JIM
Título original: Jules et Jim
Realização: François Truffaut (França, 1962); Argumento: François Truffaut, Jean Gruault, segundo romance de Henri-Pierre Roché; Produção: Marcel Berbert, François Truffaut; Música: Georges Delerue; Fotografia (p/b): Raoul Coutard; Montagem: Claudine Bouché; Design de produção: Fred Capel; Guarda-roupa: Fred Capel; Maquilhagem: Simone Knapp, Simone Knapp; Direcção de Produção: Maurice Urbain; Assistentes de realização: Robert Bober, Florence Malraux, Georges Pellegrin; Companhias de produção: Les Films du Carrosse, Sédif Productions (as S.E.D.I.F.); Intérpretes: Jeanne Moreau (Catherine), Oskar Werner (Jules), Henri Serre (Jim), Vanna Urbino (Gilberte), Serge Rezvani (Albert), Anny Nelsen (Lucie), Sabine Haudepin (Sabine), Marie Dubois (Thérèse), Michel Subor (narrador), Danielle Bassiak, Elen Bober, Pierre Fabre, Dominique Lacarrière, Bernard Largemain, Kate Noelle, Jean-Louis Richard, Michel Varesano, Christiane Wagner, etc. Duração: 105 minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo; Classificação etária (na estreia): M/ 17 anos; (no DVD): M/ 16 anos.


JEANNE MOREAU (1928 - )
Com “Ascenseur pour l'Échafaud” (1957) e “Les Amants”, ambos de Louis Malle; com “Moderato Cantabile”, de Peter Brook; com “La Notte”, de Michelangelo Antonioni, ambos de 1960; com “Jules et Jim”, de François Truffaut; com “Eva”, de Joseph Losey; com “Le Procès”, de Orson Welles, todos de 1961, Jeanne Moreau construiu rapidamente uma carreira fulgurante no cinema, uma daquelas de que poucas actrizes europeias se podem orgulhar. Passou rapidamente para a situação de ícone de uma geração, de diva ou star, mas de uma constelação muito própria. Nunca a da inacessível “estrela”, não a de sex symbol, mas a de uma actriz de um profissionalismo e de uma cultura fora de vulgar, uma mulher de causas e de paixões. 
Jeanne Moreau nasceu a 23 de Janeiro de 1928, em  Paris, França, contando presentemente 87 anos. Filha de um barman francês e de uma bailarina britânica, teve formação no conservatório, com passagem pela Comédie-Française e pelo Teatro Nacional Popular (TNP), de Jean Vilar. O seu trabalho e sensibilidade foram desde logo notados e ressalvados. O cinema chamou-a de início para pequenos épapeis, mas sem surpresa atingiu o protagonismo. Foi dirigida por grandes diretores como Michelangelo Antonioni, François Truffaut, François Ozon, Joseph Losey, Louis Malle, Luis Buñuel, Theo Angelopoulos, Wim Wenders, Rainer Werner Fassbinder, Elia Kazan, André Téchiné, Bertrand Blier e Orson Welles, entre outros. Em 1960, recebeu o prémio de Melhor Actriz no Festival de Cannes pelo seu magnífico trabalho em “Moderato Cantabile”. 1962 é um ano marcante na sua carreira com o papel de Catherine no filme de François Truffaut “Jules et Jim”.  A canção que interpreta nesta obra abre-lhe ainda o campo para uma carreira como cantora, que se inicia com o álbum do filme, ao lado do guitarrista Serge Rezvani, a que se seguem outros com o mesmo Serge Rezvani em 1963 e 1967, “J'ai la mémoire qui flanche” e “Tout morose”. Em 1965, trabalha com Orson Welles em “Falstaff”. Welles considera-a uma das maiores actrizes de sempre. Foi este realizador que a encorajou a passar à realização, o que Moreau faz com “Lumière”, em 1976, e “L'Adolescente”, em 1979. Na televisão colabora com realizadores como Jean Renoir (“Le Petit Théâtre de Jean Renoir”), Jacques Doillon (“L'Arbre”) e Josée Dayan (“Balzac”, “Les Misérables”, “Les Parents terribles”, “Les Rois maudits”…).  Em 1998, recebe um Oscar honorário, pelo conjunto da sua obra, que lhe é entregue por Sharon Stone. Em 2005, conjuntamente com o  festival “Premiers plans”, Jeanne Moreau cria uma escola de cinema, “Les Ateliers d'Angers”.
Foi casada com Jean-Louis Richard (de 1949 a 1964), Teodoro Rubanis (1966 a 1977) e William Friedkin (de 1977 a 1979). Conhecem-se ainda relações com Tony Richardson (que trocou Vanessa Redgrave por ela), Pierre Cardin,  François Truffaut, Louis Malle, ou Raoul Lévy. Brigitte Bardot fala ainda de um affair com George Hamilton, durante a rodagem no México de “Viva Maria!”. Georges Moustaki também confessou ter recebido “os seus favores”.



Filmografia
Como actriz: 1949: Dernier Amour, de Jean Stelli; 1950: Meurtres ? (Crueldade), de Richard Pottier; Pigalle-Saint-Germain-des-Prés, de André Berthomieu; 1951: Avignon, bastion de Provence, de Jean Cuenet (Curta-metragem); L'Homme de ma vie, de Guy Lefranc; 1952: Il est minuit, Docteur Schweitzer, de André Hague; Dortoir des grandes (Dormitório de Raparigas), de Henri Decoin; 1953: Julietta (Julieta), de Marc Allégret; 1953: Touchez pas au grisbi (O Último Golpe), de Jacques Becker; 1954: La Reine Margot (Rainha Enamorada), de Jean Dréville; Secrets de alcôve (Segredos de Alcova) (episódio “Le billet de logement”), de Henri Decoin;  Les Intrigantes (Os Intrigantes), de Henri Decoin; 1955: Gas-oil de Gilles Grangier; Les Hommes en blanc (Nós os Médicos), de Ralph Habib; M'sieur La Caille, de André Pergament; 1956: Le Salaire du péché (O Preço do Pecado), de Denys de La Patellière; 1956: Jusqu'au dernier de Pierre Billon; 1957: Ascenseur pour l'échafaud (Fim-de-Semana no Ascensor), de Louis Malle; 1957: Les Louves ou Démoniaque, de Luis Saslavsky; Trois jours à vivre, de Gilles Grangier; L'Étrange Monsieur Steve, de Raymond; 1957: Échec au porteur, de Gilles Grangier; Le Dos au mur (Crime passional), de Édouard Molinaro; 1958: Les Amants (Os Amantes), de Louis Malle; 1959: Les Liaisons dangereuses (As Ligações Perigosas), de Roger Vadim; 1959: Les Quatre Cents Coups (Os Quatrocentos Golpes), de François Truffaut; 1959: Matisse où le talent du bonheur, de Marcel Ophuls (voz); 1960: Le Dialogue des Carmélites (Diálogo das Carmelitas), de Philippe Agostini e Raymond Leopold Bruckberger; Moderato cantabile (Recusa), de Peter Brook; Five Branded Women ou Jovenka e le altre (Jovanka e as Outras) de Martin Ritt; La Notte (A Noite), de Michelangelo Antonioni; 1961: Une femme est une femme (Uma Mulher é uma Mulher), de Jean-Luc Godar; Jules et Jim (Jules e Jim), de François Truffaut; Eva (Eva), de Joseph Losey; Le Procès ou The Trial (O Processo), de Orson Welles; 1963: La Baie des Anges (A Grande Pecadora), de Jacques Demy; The Victors (Os Vitoriosos) de Carl Foreman; Le Feu follet (Fogo Fátuo), de Louis Malle; 1964: Peau de banane (Casca de banana), de Marcel Ophüls; Mata Hari (Mata-Hari, Agente H-21), de Jean-Louis Richard; The Train (O Comboio) de John Frankenheimer; Le Journal de une femme de chambre (Diário de Uma Criada de Quarto), de Luis Buñuel; 1965: The Yellow Rolls-Royce (O Rolls-Royce Amarelo), de Anthony Asquith; Viva María! (Viva Maria!), de Louis Malle; 1966: Le Plus Vieux Métier du monde (A Mais Antiga Profissão do Mundo, de Philippe de Broca (episódio "Mademoiselle Mimi"); Mademoiselle (Mademoiselle), de Tony Richardson; Falstaff  ou Campanadas a media noche (As Badaladas da Meia-Noite), de Orson Welles; 1967: La mariée était en noir (A Noiva Estava de Luto),de François Truffaut; Great Catherine (Catarina, Imperatriz da Rússia), de Gordon Flemyng; Dead Reckoning - The Deep, Direction Toward death, de Orson Welles (inacabado); The Sailor from Gibraltar (O Marinheiro de Gibraltar), de Tony Ridardson; 1968: The Immortal Story (História Imortal), de Orson Welle; 1969: Monte Walsh (Monte Walsh, Um Homem Difícil de Morrer), de William A. Fraker; 1969: Le Corps de Diane, de Jean-Louis ; 1969: Le Petit Théâtre de Jean Renoir, de Jean Renoir (episódio "Quand l'amour meurt"); 1970: Alex in Wonderland (Alex no País das Maravilhas), de Paul Mazursky; Os Herdeiros (Os Herdeiros), de Carlos Diegues; Henri Langlois, de Roberto Guerra e Elia Hershon (curta-metragem); 1971: Comptes à rebours (O Doce Sabor da Vingança), de Roger Pigaut; The Other Side of the Wind , de Orson Welles (Inacabado); Côté cours, côté champs, de Guy Gilles (curta-metragem); 1972: Chère Louise (Amor Ilícito), de Philippe de Broca; L'Humeur vagabonde (Humor vagabundo), de Édouard Luntz; Absences répétées, de Guy Gilles; 1973: Joanna Francesa, de Carlos Diegues; Je t'aime, de Pierre Duceppe; Nathalie Granger, de Marguerite Duras; 1974: Les Valseuses (As Bailarinas), de Bertrand Blier; La chevauchée sur le lac de Constance (TV); La Race des seigneurs, de Pierre Granier-Deferre; Une légende, une vie: Citizen Welles, de Maurice Frydland (documentário); 1975: Le Jardin qui basculhe, de Guy Gilles; Hu-Man, de Jérôme Laperrousaz; Souvenirs de en France, de André Téchiné; Jean Genet, saint, martyr et poète, de Guy Gilles (TV); 1976: Lumière, de Jeanne Moreau; The Last Tycoon (O Grande Magnate), de Elia Kazan; Chroniques de France: Jeanne Moreau, de Renaud de Dancourt (documentário); Mr. Klein (Mr. Klein - Um Homem na Sombra), de Joseph Losey; 1980: Chansons souvenir, de Robert Salis (curta-metragem); 1981: AuYour ticket is not longer valid (O Fim da Viagem), de George Kaczender; Plein sud, de Luc Béraud; 1982: Mille milliards de dollars (O Poder do Dinheiro), de Henri Verneuil; La Truite (Uma Estranha Mulher), de Joseph Losey; Querelle - Ein Pakt mit dem Teufel (Querelle - Um Pacto com o diabo), de Rainer Werner Fassbinder; L'Arbre (TV); Der Bauer von Babylon, de Dieter Schidor (curta-metragem); 1983: A Salute to Lillian Gish, de Jeanne Moreau Jean-Louis Barrault, un homme de théâtre, de Muriel Balasch (documentário); Parade of Stars (TV); L'intoxe, de Guy Seligman (TV); L'Arbre, de Jacques Doillon: Camille (TV); Huis clos (BBC1); 1985: François Simon, la présence, de Ana Simon e Louis Mouchet (documentário); Vicious Circle, de de Kenneth Ives (TV); Vivement Truffaut, de Claude de Givray (documentário); 1986: Sauve-toi, Lola, de Michel Drach; Le Paltoquet, de Michel Deville; Shades of Darkness (TV) - Agatha Christie's The Last Seance, de June Wyndhazm-Davies (TV); Le tiroir secret, de Nadine Trintignant (TV) - La saisie; 1987: Le Miraculé (Seguro de Milagre), de Jean-Pierre Mocky; Remake, de Ansano Giannarelli; 1988: La Nuit de l'océan de Antoine Perset; 1989: Jour après jour de Alain Attal; Orson Welles, stories from a life in film, de Leslie Megahey (documentário); 1988: Hôtel Terminus (Klaus Barbie, His Life and Time), de Marcel Ophuls (voz); 1990: Nikita (Nikita - Dura de Matar  ), de Luc Besson; Alberto Express, de Arthur Joffé; L'ami Giono: Ennemonde - Ami Giono, de Claude Santelli (TV); La Femme fardée, de José Pinheiro; 1991: L'Amant (O Amante),  de Jean-Jacques Annaud; La Vieille qui marchait dans la mer, de Laurent Heynemann; Bis an Ende der Welt (Até ao Fim do Mundo), de Wim Wenders; To meteoro vima tou pelargou (O Passo Suspenso da Cegonha), de Theo Angelopoulos; Anna Karamazoff, de Roustam Khamdamov; The Full Wax (TV); 1992: Map of the Human Heart (Sem Fronteiras), de Vincent Ward; À demain, de Didier Martiny; Die Abwesenheit (A Ausência), de Peter Handke; Les Arpenteurs de Montmartre, de Boris Eustache; La nuit de l'océan, de Antoine Perset; Le Temps et la chambre, de Patrice Chéreau (TV); L'Architecture du chaos, de Peter Cohen (voz); 1993: Je m'appelle Victor, de Guy Jacques; A Foreign Field, de Charles Sturridge; The Summer House, de Waris Hussein; François Truffaut, portraits volés, de Serge Toubiana e Michel Pascal (documentário); Screen Two (TV) - The Clothes in the Wardrobe; Screen One (TV Series) - A Foreign Field; It's All True, de Richard Wilson, Myron Meisel, Bill Krohn (voz); 1995: Les Cent et Une Nuits de Simon Cinéma, de Agnès Varda; Al di la delle nuvole (Para Além das Nuvens), de Michelangelo Antonioni e Wim Wenders; Belle Époque, de Gavin Millar (TV); Faire un film, pour moi c'est vivre, de Erica Antonioni; I Love You, I Love You Not (Viver Sem Medo), de Billy Hopkins; L'Univers de Jacques Demy, de Agnès Varda (documentário); Katharina die Große, de Marvin J. Chomsky e John Goldsmith (TV); 1997: The proprietor (A Proprietária), de Ismail Merchant; Un amour de sorcière, de René Manzor; Ever after (Para Sempre Cinderela), de Andy Tennant; Ruby de Peter Orton (TV);1999: Balzac, de Josée Dayan (TV); 2000: Lisa, de Pierre Grimblat; Il manoscrito del principe, de Roberto Andò; Fassbinder woman - Fur mich gab's nur noch Fassbinder, de Rosa von Praunheim (documentário); 2001: Zaïde, un petit air de vengeance, de Josée Dayan (TV); 2002: Cet amour-là (Aquele Amor), de Josée Dayan; Les Miserables (Os Miseráveis), de Josée Dayan (TV); The Will to Resist de James Newton; 2002: La Petite Prairie aux bouleaux, de Marceline Loridan; 2002: Les 13 vies du chat Lelouch, de Isabelle Clarke (documentário); 2003: Les parents terribles, de Josée Dayan (TV); 2004: Akoibon, de Édouard Baer; 2005: Le Temps qui reste (O Tempo que Resta), de François Ozon; 2005: Go West, de Ahmed Imamovic; Otograph (curta-metragem); 2005 Les rois maudits, de Josée Dayan (TV);  2006: Sortie de clown, de Nabil Ben Yadir (curta-metragem); Roméo et Juliette de Yves Desgagnés; La contessa di Castiglione, de Josée Dayan (TV); 2007: Chacun son cinema (Cada Um o Seu Cinema): episódio Trois minutes, de Théo Angelopoulos; Désengagement (A Retirada), de Amos Gitai; 2008: Collection Fred Vargas (TV) - Sous les vents de Neptune, de Josée Dayan (TV); Everywhere at Once, de Holly Fisher, Peter Lindbergh; Château en Suède, de Josée Dayan (TV); 2009: Plus tard tu comprendras, de Amos Gitai; Visages, de Tsai Ming-liang; Kérity, la maison des contes, de Dominique Monfery (voz); La guerre des fils de la lumière contre les fils des ténèbres,  de Amos Gitai; Carmel, de Amos Gitai (voz); 2011: La mauvaise reencontre, de Josée Dayan (TV); Bouquet final, de Josée Dayan (TV); 2012: Gebo et l'ombre (O Gebo e a sombra), de Manoel de Oliveira; Une Estonienne à Parism de Ilmar Raag; Al Alamayn (curta-metragem); 2013: Le tourbillon de Jeanne (TV); La Collection Jeanne Moreau (5 curtas metragens para o Canal+) de Sandrine Veysset; 2015: Le Talent de mes amis, de Alex Lutz; 10% (TV).
Como realizadora: 1976: Lumière; 1979: L'Adolescente. 

Prémios: Oscar, 1998: Oscar de honra; Festival de Cannes, 1960: Melhor Actriz, em Moderato cantabile; César, 1987: nomeação por Le Paltoquet, e 1988, nomeação por Le Miraculé; 1992, César de Melhor Actriz por La vieille qui marchait dans la mer; 1995, César de honra; Prémio Molière (teatro); 1987, nomeação por Zerline; 1988: Melhor Actriz por Zerline. 

SESSÃO 34: 12 DE SETEMBRO DE 2016


A RAPARIGA DA MALA (1961)

Existe uma meia dúzia de génios na história do cinema italiano (Felllini, De Sica, Visconti, Rossellini, Antonioni, Pasolini, Bertolucci…), que ofusca muitos outros cineastas com imenso talento mas não tão bem reconhecidos internacionalmente. Um entre muitos outros, é Valério Zurlini, um homem nascido em Bolonha, em 1926, e falecido em Verona, em 1982, e que deixou uma obra extremamente valiosa e muito solitária no interior da filmografia transalpina. Estudou Direito, passou pelo teatro, entrou no cinema pela porta do documentarismo e, em 1954, estreia-se na longa-metragem com a adaptação de um romance de Vasco Pratolini, “Le Ragazze di San Frediano” (As Raparigas de San Frediano), que é relativamente bem acolhido. Mas será com as duas obras seguintes, ambas interpretadas por Claudia Cardinale, que entrará na História, “Estate Violenta” (Verão Violento, 1959), e sobretudo “La Ragazza con la Valigia” (A Rapariga da Mala, 1961).
Pode falar-se de alguma influência do neo-realismo, mas Zurlini tem uma voz muito pessoal e um posicionamento diverso. A sua curta filmografia prossegue com outra adaptação de Pratolini, “Cronaca Familiare” (Dois Irmãos, Dois Destinos, 1962) a que se seguem títulos com recepção de público e crítica muito diversa, “Le Soldatesse” (1965), “Seduto alla sua Destra” (1968), “La Prima Notte di Quiete” (Outono Escaldante, 1972), culminando com “Il Deserto dei Tartari” (1976), uma versão muito aplaudida do romance de Dino Buzzati. Zurlini morre cedo, vítima de uma hemorragia gástrica, a sua obra nunca foi devidamente avaliada, apesar de muito amada por alguns, poucos, que lhe reconhecem a importância e o significado na renovação da cinematografia italiana. “A Rapariga da Mala” é um bom exemplo do seu talento, da sua sensibilidade, do seu olhar muito particular perante a realidade social do seu país, mas igualmente sobre as emoções e os sentimentos das suas personagens. Zurlini é um homem discreto, subtil, que desenha grandes paixões e grandes desesperos com a delicadeza necessária e o pudor que se impõe.
“A Rapariga da Mala” fala de Aida Zepponi (Claudia Cardinale), que chega a Parma no carro de Marcello Fainardi (Corrado Pani) e que é abandonada por este. Fica numa estação de comboios, só, com uma mala e o desespero de se saber traída. Procura reencontrar o playboy que a deixou, vai ter a sua casa, um belo palacete onde se encontra Lorenzo Fainardi (Jacques Perrin), o irmão mais novo de Marcello, que percebe toda a extensão da perfídia  deste e procura ajudar a “rapariga da mala” a descobrir uma solução. Mas a cada vez que se encontram, Lorenzo mais e mais se apaixona por Aida. Ele é ainda um adolescente, despertando para a vida, mas o amor invade-o e o ciúme instala-se quando vê Aida a ser galanteada e a dançar com outros.


Há neste filme da descoberta do amor uma cena absolutamente de antologia. Lorenzo leva Aida para sua casa, que nesse dia se encontra sem ninguém, e ela vai tomar um banho no andar de cima, enquanto o jovem coloca a tocar uma ária da ópera “Aida”. Quando a belíssima Claudia Cardinale desce a escadaria, envolta num roupão banco, ao som da música de Verdi, os olhos de Lorenzo brilham de encantamento e também todos os do público que assiste a esta cena inesquecível. Mas há mais. Por exemplo: Lorenzo, assistindo à sedução de Aida por um grupo de desconhecidos que a cortejam, à noite, junto à piscina do hotel, é outro momento magnífico de cinema, num filme que todo ele se impõe como uma lição na arte de exprimir por imagens emoções sem nunca cair na facilidade ou no sentimentalismo gratuito.
Para lá da qualidade sensível da realização de Zurlini, há ainda que referir a fotografia a preto e branco de Tino Santoni que, quer em exteriores como em interiores, consegue sempre apoiar as intenções dramáticas da obra, sem as tornar demasiado ostensivas, e ainda a excelente interpretação de Claudia Cardinale e Jacques Perrin, sobretudo estes dois, mas todo o elenco é perfeito. Cardinale terá uma das suas interpretações inesquecíveis, no apogeu da sua beleza e no início de uma retumbante carreira, e Jacques Perrin, que lançava já os alicerces de um percurso invulgar que o levaria a produtor de obras de autores importantes, e a papéis como o de “Cinema Paraíso”. Deve ainda sublinhar-se a banda sonora de “A Rapariga da Mala”, que oferece uma panorâmica invulgar de sucessos musicais desse período. A partitura original é de Mario Nascimbene, acompanhado por Bruno Nicolai e Mario Gangi, mas dispersos pela intriga, funcionando como comentário subtil, além do Verdi já citado, temos Peppino Di Capri, Dimitri Tiomkin, Fausto Papetti, Mina, Adriano Celentano, Umberto Bindi, Nico Fidenco, Chuck-Locatelli, não esquecendo a famosa “Tintarella di luna”.

A RAPARIGA DA MALA
Título original: La Ragazza con la Valigia
Realização: Valerio Zurlini (Itália, França, 1961);  Argumento: Leonardo Benvenuti, Piero De Bernardi, Enrico Medioli, Giuseppe Patroni Griffi, Valerio Zurlini; Produção: Charles Delac, Maurizio Lodi-Fè; Música: várias Mario Nascimbene supervisor; Fotografia (p/b): Tino Santoni; Montagem: Mario Serandrei; Design de produção: Flavio Mogherini; Guarda-roupa: Gaia Romanini; Maquilhagem: Giovanni Ranieri, Vasco Reggiani; Assistentes de realização: Mario Maffei, Piero Schivazappa; Som: Enzo Silvestri; Companhias de produção: Titanus, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.); Intérpretes: Claudia Cardinale (Aida Zepponi), Jacques Perrin (Lorenzo Fainardi), Luciana Angiolillo (Tia de Lorenzo), Renato Baldini (Francia), Riccardo Garrone (Romolo), Elsa Albani (Lucia), Corrado Pani (Marcello Fainardi), Gian Maria Volonté (Piero Benotti), Romolo Valli (Don Pietro Introna), Enzo Garinei (Pino), Ciccio Barbi (Crosia), Nadia Bianchi (Nuccia), Angela Portaluri, Edda Soligo (professora), etc. Duração: 121 minutos; Distribuição em Portugal: Costa do Castelo Filmes; Cópia DVD: Versatil Home Vídeo, Brasil; Classificação etária: M/ 12 anos.
 

CLAUDIA CARDINALE (1938 - )
É uma das mulheres mais bonitas da História do Cinema e tem uma característica invulgar: tanto é credível como uma sofisticada aristocrata, como uma camponesa da província ou uma burguesa da cidade. Não é só a beleza que a identifica, mas também uma forte personalidade e um talento imenso. Claude Josephine Rose Cardinale nasceu a 15 de Abril de 1938, em Túnis, na Tunísia,  contando agora 77 anos. Os pais eram sicilianos, ela estudou no liceu Cambon, e ganhou um concurso de beleza, que a considerava “a mais bela italiana de Túnis”. A língua familiar era o dialecto siciliano, e a língua aprendida na escola o francês. O italiano só o começou a dominar muito mais tarde. Nos seus primeiros filmes, era dobrada. Os primeiros contactos com o cinema, em 1955, resultam dessa eleição, que a leva ao Festival de Veneza, onde se faz desde logo notar. Mas Claudia queria ser professora, recusa propostas e apenas aceita interpretar uma curta-metragem, “Anneaux d'or”, de René Vautier. Só em 1958 se estreia na longa-metragem, em “Goha”, de Jacques Baratier, mas é sobretudo em “Gangsters Falhados”, de Mario Monicelli, que ela se afirma plenamente. Franco Cristaldi é o produtor, que será, a partir de 1966 até 1975, o primeiro marido de Cardinale. Os anos 60 são de triunfo constante, trabalhando sob as ordens de alguns dos mais importantes cineastas, como Luchino Visconti, Valerio Zurlini, Mauro Bolognini, Abel Gance, Henri Verneuil, Philippe de Broca, Luigi Comencini, Federico Fellini, Blake Edwards, Henry Hathaway, ou Sergio Leone. Até 1963, em “Fellini 8 ½”, Claudia Cardinale era dobrada. Em “O Leopardo” foi dobrada por Solveyg D’Assunta, mas falou francês nas cenas com Alain Delon, e inglês quando contracenava com Burt Lancaster. Nos anos 60 e 70 atingiu o estrelato internacional, em obras de Visconti, “Rocco e os Seus Irmãos” ou “O Leopardo”, ao lado de Jean-Paul Belmondo, em “Cartouche”,  no já referido “8 ½” ou em “O Mundo do Circo”, de Henry Hathaway, ou “Era uma vez no Oeste”, de Sergio Leone. Cuidando particularmente bem da sua carreira, quase só trabalhou a partir daí com grandes cineastas, como Marco Ferreri, Luigi Comencini, Franco Zeffirelli, Marco Bellocchio, Luchino Visconti (para quem  interpretou quatro filmes), Jerzy Skolimowski, Mikhaïl Kalatozov, George P. Cosmatos, Alan Bridges, Werner Herzog, Christian-Jaque, José Giovanni, Michel Lang, Nadine Trintignant, Diane Kurys ou Robert Enrico, e muitas vezes para o seu segundo marido, o produtor e realizador  Pasquale Squitieri (1975 até ao presente). A partir dos anos 90 a sua participação no cinema é espaçada, mas intensifica a televisão, ao teatro e à escrita. Nos anos 2000, em Paris, interpreta, “La Vénitienne”, de um anónimo do século XVI (2000), e “Sweet Bird of Youth” de Tennessee Williams (2005). De espírito liberal, empenhada politicamente, defendendo causas humanitárias, foi Embaixadora de Boa Vontade da UNESCO, em 1999. Escreveu uma autobiografia, lançada em 2005, “Mes étoiles” (Ed.Michel Lafon) e, em 2009, um livro de fotografias,  “Ma Tunisie” (Ed. Timée). Uma das suas últimas interpretações no cinema foi em 2012, “O Gebo e a Sombra”, de Manoel de Oliveira. A 20 de Maio de 2015, espalhou-se a notícia de que Claudia Cardinale teria falecido. Mais uma daquelas brincadeiras de mau gosto que só tem um lado positivo: o desmentido. Felizmente, Claudia Cardinale, uma das mais belas e talentosas actrizes do cinema, está viva.



Filmografia:

Como actriz: 1955: Anneaux de Or, de René Vautier (curta-metragem); 1958: Goha le simple, de Jacques Baratier; 1958: Tre straniere a Roma, de Claudio Gora; I soliti ignoti (Gangsters Falhados),de Mario Monicelli; 1959: Vento del Sud, de Enzo Provenzale; Un maledetto imbróglio (A 3 ª Chave), de Pietro Germi; Il magistrato (Todos foram culpados), de Luigi Zampa; Audace colpo dei soliti ignoti (Golpe Audacioso), de Nanni Loy; La prima notte (Amor e Vigarice), de Alberto Cavalcanti;  Upstairs and Downstairs (Escada Acima, Escada Abaixo), de Ralph Thomas; 1960: La Ragazza con la valigia (A Rapariga da Mala), de Valerio Zurlini; I Delfini, de Francesco Maselli;  Rocco e i suoi fratelli (Rocco e os Seus Irmãos), de Luchino Visconti; Le Bel Antonio (O Belo António), de Mauro Bolognini; Austerlitz (Austerlitz), de Abel Gance; 1961: La Viaccia (A Herança), de Mauro Bolognini; Les Lions sont Lâchés, de Henri Verneuil; Auguste, de Pierre Chevalier; 1962: Cartouche (Cartouche), de Philippe de Broca; Senilità (Beleza Perversa), de Mauro Bolognini; 1963: La ragazza di Bube (A Rapariga de Bube), de Luigi Comencini; 1963: Otto e mezzo (Fellini Oito e Meio), de Federico Fellini; 1963: Il Gattopardo (O Leopardo), de Luchino Visconti; 1963: The Pink Panther (A Pantera Cor-de-Rosa), de Blake Edwards; 1964: Il Magnifico Cornuto (A eterna dúvida), de Antonio Pietrangeli; Gli indifferenti (Os Indiferentes), de Francesco Maselli; Circus World (O Mundo do Circo), de Henry Hathaway; 1965: Vaghe stelle dell'Orsa (Estrelas Vagas de Ursa Sandra), de Luchino Visconti; Blindflod (Com os Olhos Vendados), de Philip Dunne; 1966: Le Fate (As Feiticeiras), (epidódio "Fata Armenia"), de Mauro Bolognini; Lost Command (Os Centuriões), de Mark Robson; The Professionals (Os Profissionais), de Richard Brooks; 1967: Don't Make Waves (Não Faças Ondas), de Alexander Mackendrick; Una Rosa per tutti (Uma rosa para todos), de Francesco Rosi; 1968: La Amante Estelar, de Antonio de Lara (curta-metragem); Il giorno della civetta (O Dia da Vergonha),  de Damiano Damiani; The Hell With Heroes (Vidas Perigosas) de Joseph Sargent; C'era una volta il West (Aconteceu no Oeste), de Sergio Leone; Ruba al prossimo tuo (Que rico par!), de Francesco Maselli; 1969: Nell'anno del Signore, de Luigi Magni; Krasnaya palatka (A Grande Odisseia), de Mikhaïl Kalatozov; Certo, certissimo anzi probabile (Certo, Certíssimo, ou... Talvez Não), de Marcello Fondato; 1970: The Adventures of Gerard (Aventuras de Gerard),  de Jerzy Skolimowski; 1971: L'Udienza (A Audiência) de Marco Ferreri; Bello, onesto, emigrato Australia sposerebbe compaesana illibata (Casamento por Procuração),  de Luigi Zampa; Popsy Pop, de Jean Herman; Les Pétroleuses (As Rainhas do Petróleo), de Christian-Jaque; 1972: La Scoumoune (O Bandido Bem-Amado),  de José Giovanni; 1973: Libera, amore mio... (Libera, Meu Amor...),  de Mauro Bolognini; I guappi, de Pasquale Squitieri; Il giorno del furore, de Antonio Calenda; 1974: Gruppo di famiglia in un interno (Violência e Paixão), de Luchino Visconti; 1975: A mezzanotte va la ronda del piacere (Meia-Noite de Prazer), de Marcello Fondato; 1976: La lozana andaluza, de Vicente Escrivá; Il Comune senso del pudore (O Discreto Sentido do Pudor), de Alberto Sordi; 1977: Qui comincie l'avventura (Aqui Começa a Aventura), de Carlo Di Palma; Il prefetto di ferro (O Governador de Ferro), de Pasquale Squitieri; Jesus de Nazaré (TV); Corleone (O Último Padrinho), de Pasquale Squitieri; 1978: Goodbye & Amen (O Homem da CIA), de Damiano Damiani; 1978: L'arma (A Arma), de Pasquale Squitieri; La Part du feu, de Étienne Périer; Escape to Athena (Fuga para Atenas), de George P. Cosmatos; 1979: Little Girl in Blue Velvet (A Rapariga do Vestido Azul), de Alan Bridges; 1980: Si salvi chi vuole, de Roberto Faenza; 1981: The Salamander (O Esquadrão Salamandra), de Peter Zinner: Elena Leporello; La pelle (A Pele) de Liliana Cavani; 1982: Fitzcarraldo (Fitzcarraldo), de Werner Herzog; 1982: Le Cadeau (O Presente), de Michel Lang; 1983: Le Ruffian (Os Grandes Aventureiros), de José Giovanni; Princess Daisy, de Marco Bellocchio(TV); 1984: Claretta,  de Pasquale Squitieri;  1984: Enrico IV (Henrique IV), de Marco Bellocchio; 1985: La donna delle meraviglie, de Alberto Bevilacqua; L'Été prochain, de Nadine Trintignant; 1986:  Naso di cane (TV); La storia (A História), de Luigi Comencini (TV); 1987: Un uomo innamorato (Homem Apaixonado), de Diane Kurys; 1989: La Révolution française de Robert Enrico e Richard T. Heffron (episódio "Les Années Lumière"); Hiver 54, l'abbé Pierre, de Denis Amar; Atto di dolore, de Pasquale Squitieri; Blu elettrico,  de Elfriede Gaeng (TV); 1990: La batalla de los tres reyes, de Souheil Ben-Barka e Uchkun Nazarov; 1991: Mayrig, de Henri Verneuil; 588, rue Paradis, de Henri Verneuil; 1993: Flash - Der Fotoreporter - Das Zweite Gesicht der Aida; 1993: Son of the Pink Panther (O Filho da Pantera Cor-de-Rosa) de Blake Edward; Mayrig (TV); 1994: Elles ne pensent qu'à ça..., de Charlotte Dubreuil; 1995: 10-07: L'affaire Zeus (TV); 1996: Un été à La Goulette, de Férid Boughedir; Nostromo (TV); 1997: Sous les pieds des femmes, de Rachida Krim; Riches, belles, etc., de Bunny Godillot (ou Bunny Schpoliansky, ou Harmel Sbraire); Il deserto di fuoco (TV); 1998: Mia, Liebe meines Lebens (TV); 1999: Un café... l'addition, de Félicie Dutertre e François Rabes (curta-metragem; 1999: Li chiamarono... briganti!, de Pasquale Squitieri; 2000: Élisabeth - Ils sont tous nos enfants (TV); 2001: And now... Ladies and Gentlemen (Amantes Sem Passado), de Claude Lelouch; 2005: Le Démon de midi, de Marie-Pascale Osterrieth; 2007: Cherche fiancé tous frais payés de Aline Issermann; 2008: Hold-up à l'italienne, de Claude-Michel Rome (TV); 2009: Le Fils (O Meu Filho), de Mehdi Ben Attia; 2010: Un balcon sur la mer (Uma Vista Para o Mar), de Nicole Garcia; Sinyora Enrica ile Italyan Olmak, de Ali Ilhan; Il giorno della Shoah (TV); 2011: Joy de V., de Nadia Szold; 2012: O Gebo e a Sombra de Manoel de Oliveira; El artista y la Modelo, de Fernando Trueba; 2013: Effie Gray, de Richard Laxton; 2014: The Silent Mountain de Ernst Gossner; Ultima  Fermata, de Giambattista Assanti;  Les Francis, de Fabrice Begotti; 2015: Piccolina bella, de Anna Scaglione; All Roads Lead to Rome, de Ella Lemhagen; Twice Upon a Time in the West, de Boris Despodov.

SESSÃO 33: 5 DE SETEMBRO DE 2016


BONECA DE LUXO (1961)

O romance donde parte “Boneca de Luxo” traz a assinatura de Truman Capote e tem o título homónimo do filme no original, “Breakfast at Tiffany's”. A sequência inicial mostra-nos Audrey Hepburn (Holly Golightly / Lula Mae Barnes) frente a uma das montras da joalharia Tiffani’s comendo um croissant, bebendo leite de pacote, olhando as jóias do seu encantamento. A banda sonoro é “Blue Moon”. Não se pode ser mais romântico e, todavia, este é um filme de uma muito saudável amoralidade, ou não fosse Capote o seu autor literário. Sobre isso há desde já que dizer que Blake Edwards e o seu argumentista George Axelrod alteraram bastante alguns aspectos do romance para o encaixar numa mais aceitável versão de grande público. Paul Varjak (George Peppard), por exemplo, no romance é assumidamente homossexual, e  Holly Golightly não é apenas uma acompanhante de luxo de homens ricos, mas igualmente de mulheres. O filme ignora ambas as questões e cria para Varjak uma senhora casada, bem instada na vida (Patricia Neal), que lhe decora o apartamento e lhe deixa ainda generosos cheques na mesa da sala, antes de sair satisfeita dos seus encontros. Não se pode dizer que a moralidade seja recuperada inteiramente, mas é mais atenuada.
É Varjak quem resume a história quando tenta iniciar um novo romance: “era uma vez uma bela rapariga que vive com um gato sem nome…” Vem a saber-se depois que a bela rapariga que vive em Nova Iorque nasceu no Texas, casou aos 14 anos com  Doc Golightly (Buddy Ebsen), tem um irmão, Fred, que adora, fugiu de uma vida miserável e anónima para se instalar em Nova Iorque fazendo valer a sua beleza e outros encantos a homens que ela seduz em busca de um casamento rico. Tem realmente um gato, a que chama Gato, porque um gato não tem nome, não pertence a ninguém, como ela própria. Ela ama coisas bravias, julga-se indomável, não acredita no amor, ou pelo menos julga não acreditar, pede 50 dólares ao acompanhante sempre que vai ao toilette, é um estouvada que não se preocupa com as festas que dá e o barulho que provocam (o que leva o chinês do andar de cima a protestar continuamente e a ameaçar chamar a polícia…) e a sua boquilha enorme é bem capaz de provocar um incêndio no chapéu de uma qualquer convidada. De resto, rega plantas com whisky, o que é sempre de bom tom. Hepburn que tem uma carreira carregada de sucessos e de fulgurantes interpretações tem aqui o papel de uma vida (mas, neste caso, Hepburn é como os gatos, tem sete vidas).
Deliciosamente tresloucada e ingénua nalguns aspectos da vida, pelo menos assim parece, tem mesmo como padrinho um velhote simpático que ela visita semanalmente na prisão de Sing Sing. Para lhe entregar o “boletim meteorológico” e receber 100 dólares em troca. Claro que um dia vai ter problemas com as autoridades da brigada antidroga.


Tiffani’s é a sua obsessão e não é de estranhar que quando o prometedor escritor consegue ter 10 dólares vão os dois à joalharia procurar alguma coisa desse preço. Obviamente tarefa impossível, a não ser para um pequeno dedilhador de prata para telefone, bizantinice que não está nos propósitos do casal. Mas o bem avontadado empregado da Tiffani’s além de ter seguramente apadrinhado financeiramente o filme (em boa hora!), ainda aceita gravar as iniciais da Holly num anel que lhes saiu no equivalente americano da Farinha Amparo. Blake Edward é um realizador por vezes brilhante com um sentido da comédia admirável. Além deste esplêndido “Breakfast at Tiffany's”, assinou comédias como “10”, a notável série inicial da “Pantera Cor-de-Rosa”, “Darling Lili”, “The Great Race”, o fabuloso “The Party”, “That's Life!”, "S.O.B."  ou “Victor/Victoria”, o que não o impediu de rodar um drama espantoso, “Days of Wine and Roses”, ou um western extremamente interessante, “Wild Rovers”, entre muitos outros títulos a merecer atenção.
O filme tornou célebre o nº 167 East 71st Street, em Manhattan, Nova Iorque, e seu o poster, que aparece em dezenas e dezenas de quartos de jovens em diversas outras películas, foi considerado o 18º melhor cartaz de sempre num inquérito, “"The 25 Best Movie Posters Ever" organizado pela revista “Premiere”.
Curiosamente quem estava para interpretar o principal papel feminino de “Breakfast at Tiffany's” era Marilyn Monroe, que, alguns anos antes, tinha aparecido, sob as ordens de Billy Wilder, “O Pecado Mora ao Lado”. Ambos os filmes convocam algumas similitudes. Mas Marilyn, que julgo teria sido igualmente uma óptima escolha, ainda que num outro registo, escusou-se. Quem a aconselhou foi Lee Straberg, o guru do Actor’s Studio, que não viu com bons olhos a actriz a interpretar um papel de prostituta de luxo. Foi então convidada a belga Audrey Hepburn. O filme foi começado a rodar por John Frankenheimer, mas Hepburn não se deu bem com ele e este acabou substituído por Blake Edwards.
O elenco é todo ele de luxo, para lá de Audrey Hepburn que, como já vimos, é sumptuosa na composição de Holly Golightly. Mas George Peppard, longe dos filmes catástrofe em que parece ter-se especializado, está muito bem no discreto e tímido escritor Paul "Fred" Varjak, Patricia Neal é uma convincente decoradora em crise de meia idade, Buddy Ebsen é o compreensível e saudoso Doc Golightly, Martin Balsam            é O. J. Berman, um dos muitos generosos contribuintes para a boa vida de Holly, o VIP espanhol José Luis de Vilallonga passa por José da Silva Pereira, um brasileiro cobardolas, muito cioso d seu bom nome, John McGiver é o impagável vendedor da Tiffany's e Mickey Rooney interpreta o impagável Sr. Yunioshi, um chinês resmungão, que antecipa de alguns anos a personagem do chinês ajudante de Peter Seller na serie A Pantera Cor-de-rosa.
“Breakfast at Tiffany's” recebeu diversos prémios e nomeações. Foi nomeado para cinco categorias do Oscar, vencendo duas, três nos Globos de Ouro e cinco nomeações para os Grammy. Nos Oscars as nomeações foram para Audrey Hepburn, para o argumentista George Axelrod            e para a direcção artística, Hal Pereira, Roland Anderson, Samuel M. Comer e Ray Moyer; Ganhou os Oscars de Melhor partitura, Henry Mancini, e Melhor Canção  , a magnífica "Moon River", igualmente de Henry Mancini, escrita igualmente para este filme e, mais ainda, para a voz de Audrey Hepburn. Esta a cantá-la no canto de uma janela, dedilhando uma guitarra tornou-se numa das imagens de marca do filme e de uma certa época.

BONECA DE LUXO
Título original: Breakfast at Tiffany's
Realização: Blake Edwards (EUA, 1961); Argumento: George Axelrod, segundo romance de Truman Capote; Produção: Martin Jurow, Richard Shepherd; Música: Henry Mancini; Fotografia (cor): Franz Planer, Philip H. Lathrop; Montagem: Howard A. Smith; Casting: Marvin Paige; Direcção artística: Roland Anderson, Hal Pereira; Guarda-roupa: Hubert de Givenchy, Edith Head, Pauline Trigere, Joan Joseff; Decoração: Sam Comer, Ray Moyer; Maquilhagem: Nellie Manley, Wally Westmore; Assistentes de realização: William McGarry; Departamento de arte: Gene Lauritzen, Robert McGinnis; Som: Hugo Grenzbach, John Wilkinson, Richard Gramaglia; Efeitos visuais: Farciot Edouart, John P. Fulton; Companhias de produção: A Jurow-Shepherd Production; Intérpretes: Audrey Hepburn (Holly Golightly), George Peppard (Paul Varjak), Patricia Neal (2-E), Buddy Ebsen (Doc Golightly), Martin Balsam (O.J. Berman), José Luis de Vilallonga (José), John McGiver (vendedor de Tiffany), Alan Reed (Sally Tomato), Dorothy Whitney (Mag Wildwood), Beverly Powers (Stripper), Stanley Adams (Rusty Trawler), Claude Stroud (Sid Arbuck), Elvia Allman, Orangey (o gato), Mickey Rooney (Mr. Yunioshi), Alfred Avallone, Janet Banzet, Henry Barnard, Henry Beckman, Nicky Blair, Mel Blanc, Bill Bradley, Thayer Burton, Florine Carlan, Sue Casey, Roydon Clark, Marian Collier, Christine Corbin, Dick Crockett, Tom Curtis, Tommy Farrell, James Field, George Fields, Joe Gray, Joseph J. Greene, Barbara Kelley, Kip King, Frank Kreig, Gil Lamb, Hanna Landy, James Lanphier, Mary LeBow, Paul Lees, Leatrice Leigh, Mel Leonard, Mike Mahoney, Frank Marth, Fay McKenzie, Joyce Meadows, Hollis Morrison, Kate Murtagh, Bill Neff, Miriam Nelson, Chuck Niles, Peggy Patten, Robert Patten, John Perri, Michael Quinlivan, William Benegal Rau, Joe Scott, Charles Sherlock, Annabella Soong, Helen Spring, Joan Staley, Nino Tempo, Towyna Thomas, Glen Vernon, Linda Wong, Wilson Wood, Richard Wyler, Michael Zaslow, etc. Duração: 115 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Paramount / Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos.


AUDREY HEPBURN (1929- 1993)
Quando ainda adolescente, mas já apaixonado por cinema, escrita e belas mulheres, vi “Guerra e Paz”, de King Vidor, e achei (e escrevi-o num jornal de Portalegre, cidade onde então vivia), que Audrey Hepburn era uma Natasha Rostova sem igual. A minha paixão por Audrey Hepburn permanece e resiste ao tempo. Acho que nunca vi um mau filme com esta actriz.
Audrey Kathleen Ruston, conhecida no cinema por Audrey Hepburn, nasceu a 4 de Maio de 1929, em Bruxelas, Bélgica, e viria a falecer a 20 de Janeiro de 1993, em Tolochenaz, Vaud, na Suíça.  Se há actriz de sangue azul, autêntico e certificado, é esta. A mãe era a baronesa holandesa, Ella van Heemstra, e o pai, Joseph Victor Anthony Ruston, empresário nascido na Boémia, com ascendência inglesa e austríaca. O pai descobre nos seus ancestrais o nome de família Hepburn, que lhe acrescenta oficialmente. Passa a chamar-se Audrey Kathleen Hepburn-Ruston. Com o divórcio dos pais, Audrey viajou com a mãe para Londres, onde estudou. De regresso à Holanda, passou por privações várias durante a ocupação nazi. Chegou a comer folhas e bolbos de tulipas para sobreviver e assistiu à tortura e morte de familiares pelos nazis. Para a libertar da sua ascendência inglesa, mal vista pelos nazis, a mãe mudou-lhe nesse período o nome de Audrey para Edda. Depois da Libertação, regressou aos estudos em Londres, ingressou na escola de ballet de Marie Rambert (de onde saiu por ser alta demais e não ter vocação), trabalhou como modelo e ingressou no cinema em 1948, num pequeno papel, em “Nederlands in 7 lessen”, de Charles Huguenot van der Linden. Conhece Colete, que a escolhe para interpretar “Gigi” no teatro. Em 1951, com “Young Wives' Tale”, chama a atenção e, dois anos depois, é o triunfo, já na produção norte americana, com  “Férias em Roma”, de William Wyler, que se torna um grande sucesso de público e crítica e com o qual Audrey Hepburn ganha o Oscar de Melhor Actriz. Três dias depois ganha o Emmy pelo seu trabalho em teatro, na peça “Gigi”. Carreira fulgurante e triunfal. Ela não apresenta os atributos das "sex goddesses" dessa época, mas em contrapartida apresenta um beleza sofisticada, aureolada com alguma inocência e muita classe. Depois de “Férias em Roma” (1953) a carreira prossegue com obras que se tornam clássicos de um certo tipo de comédias românticas  como “Cinderela em Paris”, “Sabrina”, “Ariane”,  ou dramas como “A História de Uma Freira” (1959). Com “Boneca de Luxo” (1961) transforma-se num ícone de ressonância mundial, o que se mantém nas obras posteriores, “Charada” (1963), “Minha Linda Lady” (1964), terminando a sua filmografia com alguns títulos que fogem ao seu registo tradicional, “Caminho para Dois” (1967), e o filme de terror “Os Olhos da Noite” (1967). Depois deste filme, apresentaram-lhe propostas para aparecer em muitos outros, como “Adeus, Mr. Chips” (1969), “40, Idade Perigosa” (1973), “Nicolau e Alexandra” (1971), “O Exorcista” (1973), “Voando Sobre Um Ninho de Cucos” (1975), “Uma Ponte Longe Demais” (1977) ou “A Grande Decisão” (1977), mas recusou-os todos. Depois de ter casado com o psiquiatra Andrea Dotti, foram raras as suas aparições no cinema. Regressou em 1976, em “A Flecha e a Rosa”, de Richard Lester, e podemos ainda vê-la em “Laços de Sangue” e “Romance em Nova Iorque”, antes de dar por terminada a carreira em “Sempre”, de Steven Spielberg. Em 1988, Audrey tornou-se Embaixadora Especial das Nações Unidas, UNICEF, desenvolvendo esforços para ajudar as crianças da América Latina e de África. Na votação do American Film Institute relativa às “50 Greatest Screen Legends” aparece em terceiro lugar. Foi considerada uma das mais belas mulheres de sempre em vários inquéritos, como os das revistas “People”, “Entertainment Weekly”, "New Woman", “Premiere” e “Empire”. Morreu a 20 de Janeiro de 1993, em Tolochnaz, na Suíça, vítima de um cancro. Casada com o actor Mel Ferrer (1954 - 1968), que conheceu durante uma festa dada por Gregory Peck, e, posteriormente, com o Dr. Andrea Dotti (1969 - 1982). Viveu os últimos anos da vida na Suíça, na companhia de Robert Wolders, um actor holandês. Falava fluentemente diversas línguas: inglês, holandês, espanhol, francês e italiano. Henry Mancini afirmou que o tema “Moon River” tinha sido escrito para ela cantar e que ela o cantou como ninguém mais, apesar de centenas de versões, algumas de vozes como a de Sinatra. O seu papel de Holly Golightly, em “Boneca de Luxo” foi considerada a 32ª melhor interpretação de sempre na votação do “Première Magazine”, “100 Greatest Performances of All Time” (2006). Recusou interpretar “O Diário de Anne Frank” (1959) para não reviver os horrores passados sob a dominação nazi na Holanda. Quando tinha 16 anos, durante a batalha de Arnhem, Audrey foi enfermeira voluntária e tratou um jovem militar inglês ferido, Terence Young, que, mais de 20 anos depois, seria seu director em “Os Olhos da Noite” (1967).
Oscar para Melhor Actriz em “Férias em Roma” (1953) e Oscar Especial por razões Humanitárias em 1993. Nomeada por mais quatro vezes: “Sabrina” (1954), “The Nun's Story” (1959), “Breakfast at Tiffany's” (1961), “Wait Until Dark” (1967). Foi uma das raras actrizes a ganhar Oscar, Globo, Tony, Emmy e Grammy. Entre os seus amigos mais chegados contavam-se Elizabeth Taylor, Eva Gabor, Peter Bogdanovich, Blake Edwards, Julie Andrews, Shirley MacLaine, Gregory Peck, Ben Gazzara e Capucine. Ganhou o Tony Award de Melhor Actriz em 1954, com “Ondine” e em 1968 um Tonny honorário. Ganhou o Globo de Ouro, em 1953, com “Roman Holiday” e o Prémio Cecil B. DeMille, em 1990, um Prémio Honorário. Ganhou três BAFTAS, para “Roman Holiday”, “The Nun’s Story” e “Charade”. A 8 de Fevereiro de 1960 foi-lhe dada uma estrela no Passeio da Fama  de Hollywood. No ano de 2000 foi lançado o filme “The Audrey Hepburn Story”, uma homenagem a Audrey, com Jennifer Love Hewitt no papel principal.



Filmografia

Como actriz: 1948: Nederlands in 7 lessen, de Charles Huguenot van der Linden; 1949: Sauce Tartare (TV); 1950: Saturday-Night Revue (TV); 1951: One Wild Oat, de Charles Saunders; Laughter in Paradise (Uma Bela Piada), de Mario Zampi; Young Wives’ Tale, de Henry Cass; The Lavender Hill Mob (Roubei Um Milhão), de Charles Crichton; BBC Sunday-Night Theatre (TV) – episódio The Silent Village; 1952: The Secret People, de Thorold Dickinson; Nous irons à Monte-Carlo ou Monte Carlo Baby (Iremos a Monte Carlo), de Jean Boyer; CBS Television Workshop (TV); 1953: Roman Holiday (Férias em Roma), de William Wyler; 1954: Sabrina (Sabrina), de Billy Wilder; 1956: War and Peace (Guerra e Paz), de King Vidor; 1957: Funny Face (Cinderela em Paris), de Stanley Donen; Love in the Afternoon (Ariane), de Billy Wilder; Producers' Showcase (TV) – episódio Mayerling; 1959: Green Mansions (A flor que não morreu), de Mel Ferrer; 1959: The Nun’s Story (A História de Uma Freira), de Fred Zinnemann; 1960: The Unforgiven (O Passado Não Perdoa), de John Huston; 1961: Breakfast at Tiffany’s (Boneca de Luxo), de Blake Edwards; The Children’s Hour (A Infame Mentira), de William Wyler; 1963: Charade (Charada), de Stanley Donen; 1964: Paris When it Sizzles (Quando Paris delira), de Richard Quine; My Fair Lady (Minha Linda Lady), de George Cukor;  1966: How to steal a million (Como Roubar Um Milhão), de William Wyler; 1967: Two for the Road (Caminho para Dois), de Stanley Donen; Wait Until Dark (Os Olhos da Noite), de Terence Young; 1976: Robin and Marian (A Flecha e a Rosa), de Richard Lester; 1979: Bloodline (Laços de Sangue), de Terence Young; 1981: They All Laughed (Romance em Nova Iorque), de Peter Bogdanovich; 1987: Love Among Thieves (TV);1989: Always (Sempre), de Steven Spielberg.