terça-feira, 22 de dezembro de 2015

SESSÃO 2 - 11 DE JANEIRO DE 2016


E DEUS… CRIOU A MULHER (1956)

Roger Vadim não pertencia ao grupo dos “Cahiers du Cinema” que reclamou para si a criação da “Nouvelle Vague”, em finais da década de 50 do século XX, mas a verdade é que se há filme que tenha lançado um novo movimento em França, em 1956, esse filme foi "Et Dieu... Créa la Femme". Por variadíssimas razões: um jovem realizador que não tem atrás de si nenhuma experiência a não ser como argumentista, uma produção bastante diferente da dos habituais estúdios franceses da época, uma realização muito mais livre e espontânea, rodada em grande parte em exteriores (e interiores) naturais (na Riviera francesa, sobretudo em La Ponche e Saint-Tropez), uma atenção muito especial a personagens jovens, com comportamentos que se desviavam muito dos padrões tradicionais, actores quase desconhecidos (Brigite Bardot tinha atrás de si uma carreira de figurante e de secundária até 1956, o mesmo se podendo dizer de Jean-Louis Trintignant), sobretudo sem as técnicas de representação do então chamado “cinema de papa”. Pode, portanto, dizer-se que se não está incluída no lote das películas que os puristas da “Nouvelle Vague” advogam, será certamente um excelente exemplo prévio do que se anunciava. Com a agravante de o seu êxito comercial e de crítica muito ter contribuído para abrir caminho às obras de Truffaut, Godard, Rivette, Chabrol, e tantos outros. De resto, nenhuma linha ideológica unia estes cineastas, e a sua atenção inicial virou-se sobretudo para os mesmos temas de Vadim: os jovens, a sua rebeldia perante a sociedade onde cresciam, perante a hipocrisia de um stato quo bem instalado que não quer perder as regalias de que usufrui. Jovens que descobrem uma sexualidade livre, que rompem com tabus, que expõem o corpo e o desejo, que querem viver perigosamente. Veja-se o caso de Juliete Hardy (Brigitte Bardot), a protagonista de “E Deus… criou a Mulher”, quando lhe perguntam porque dispara contra garrafas: “Adoro disparar. É excitante”.


Numa zona piscatória de St. Tropez, Juliete Hardy, uma órfã com cerca de dezoito anos, é empregada numa tabacaria, e vive sob a custódia de uma família que a adoptou, retirando-a do orfanato. Juliete é temperamental, rebelde, de sangue quente e de sexualidade à flor da pele. Não será de estranhar que todos se virem quando passa, sobretudo montada na sua bicicleta e com uma roupa colado ao corpo, desenhando-lhe as formas e deixando adivinhar o desejo inquieto. Eric Carradine (Curd Jurgens), um homem de meia-idade e bem instalado nos negócios dos estaleiros, não esconde as intenções, nem ela lhe esconde o corpo, quando este a visita, e a encontra a tomar banhos de sol, nua. Mas Antoine Tardieu (Christian Marquand) também a deseja, com intenções igualmente pouco recomendáveis. Quando a postura de Juliete começa a dar brado na comunidade e as vozes se levantam, os pais adoptivos querem devolvê-la ao orfanato. Para impedir esse desenlace, Michel Tardieu (Jean-Louis Trintignant), o generoso e algo ingénuo irmão mais novo de Antoine, oferece-se para casar com Juliete. O que acontece, com consequências dramáticas.


Nos anos 50, tudo é escandaloso neste filme. Não que a realidade do dia-a-dia não confirmasse todas as situações e personagens, mas nunca tinham sido apresentadas no cinema imagens com tal crueza. Antes de tudo o mais, a figura de Juliete Hardy, a sua irreverência, a sua ingénua perversidade (parece contraditório, mas não é, está patente e é um dos fascínios desta personagem), o gosto pelo risco, a sedução, o erotismo selvagem e sem regras, tudo isso transtorna as mentes bem pensantes da época. Juliete Hardy é a provocação em andamento, e não foi de estranhar que as Ligas de Decência dos EUA tenham boicotado a obra, pouco depois de terem feito o mesmo ao filme de Elia Kazan “A Voz do Desejo” (Baby Doll), igualmente de 1956. O escândalo ajudou a promover o título, que rapidamente se tornou um sucesso. Depois, o interesse pouco ortodoxo de um homem de certa idade por uma jovem de dezoito anos não era tema fácil de digerir, nem sequer a forma como Antoine deseja a presa que julga fácil. A ingenuidade de Michel Tardieu e a forma como ela é rapidamente ultrapassada por Juliette será outro motivo de inquietação. Nada no filme se coaduna com os “bons costumes” que as “gentes de bem” pregam (mesmo que muitas vezes os não pratiquem na prática, mas esse é um outro problema: vícios privados, públicas virtudes, é o lema). O que “E Deus…Criou a Mulher” vem pôr a descoberto é precisamente essa duplicidade de olhar e de comportamento. Roger Vadim e a sua vedeta de momento escancaram a hipocrisia da V República Francesa. Juliete Hardy ficará para sempre como o símbolo de uma juventude rebelde e insubmissa. O retrato feminino e francês dos “teddy boys” americanos que eram visíveis em filmes como “Fúria de Viver” (Rebel Without a Cause), “O Selvagem” (The Wild One) ou “Sementes de Violência” (Blackboard Jungle).


De resto, a obra de Vadim apresentava uma espontaneidade de olhar e de escrita que surpreendia e mostrava uma Saint-Tropez que rapidamente se tornaria uma sensação turística por causa dos feitos de BB (o mesmo aconteceria mais tarde na paria de Búzios, no Brasil, que a actriz visitou e que tornou famosa de tal forma que tempos depois se lhe erigiu uma estátua no centro da cidade). Brigitte lançava-se aqui também como cantora, sobretudo com um tema que faria furor: “Dis-moi quelque chose de gentil”.
O filme acaba, de certa forma, por castigar a ousadia da jovem, mas ostentar essa sensualidade de que os homens se aproximam mas não conseguem refrear (é ela sempre que comanda as operações, ainda que nem sempre da melhor maneira) era já de si um elemento perturbador e profundamente “novo”. Para mais numa pouco mais que adolescente. Era um passo importante na emancipação da mulher, sobretudo na assunção de um lugar idêntico ao do homem, num capítulo tão sensível como a sexualidade. 



E DEUS… CRIOU A MULHER
Título original: Et Dieu... Créa la Femme
Realização: Roger Vadim (França, Itália, 1956); Argumento: Roger Vadim, Raoul Lévy; Produção: Raoul Lévy, Ignace Morgenstern; Música: Paul Misraki; Fotografia (cor):  Armand Thirard; Montagem: Victoria Mercanton; Design de produção: Jean André;  Maquilhagem: Hagop Arakelian; Direcção de Produção: Michel Choquet, Claude Ganz, Jacqueline Leroux-Cabuis; Assistentes de realização: Pierre Boursaus, Paul Feyder;  Departamento de arte:  Jean Forestier, Georges Petitot; Som: Pierre-Louis Calvet; Companhias de produção: Cocinor, Iéna Productions, Union Cinématographique Lyonnaise (UCIL); Intérpretes: Brigitte Bardot (Juliete Hardy), Curd Jürgens (Eric Carradine), Jean-Louis Trintignant (Michel Tardieu), Jane Marken (Madame Morin, Jean Tissier (M. Vigier-Lefranc), Isabelle Corey (Lucienne), Jacqueline Ventura (Mme Vigier-Lefranc), Jacques Ciron, Paul Faivre, Jany Mourey, Philippe Grenier, Jean Lefebvre, Leopoldo Francés, Marie Glory, Georges Poujouly, Christian Marquand (Antoine Tardieu), Roger Vadim (um amigo de Antoine no carro), Raoul Lévy (um jogador), etc. Duração: 95 minutos; Distribuição em Portugal: PrisvÍdeo; Classificação etária: M/ 12 anos.


BRIGITTE BARDOT (1934 - )
Foi Jean Cocteau, quem a dirigiu num filme seu, que dela disse: “A sua beleza e talento são inegáveis, mas ela possui qualquer coisa mais que atrai os idólatras numa época privada de deuses". Falava de Brigitte Bardot. Nasceu a 28 de Setembro de 1934, em Paris, França, de uma família burguesa, bem instalada na vida. A mãe é Anne-Marie Mucel, o pai, Louis Bardot, um industrial de ar líquido, dono das Usines Bardot, e um entusiasta por cinema. Educada de forma rigorosa, desde muito nova que lhe foi diagnosticada uma ambliopia, disfunção oftálmica caracterizada pela perda da visão num dos olhos, no seu caso o esquerdo. Estuda dança clássica, sendo uma óptima aluna do curso Bourgat. Em 1949, entra para o Conservatoire de Paris. Nesse mesmo ano, Hélène Lazareff, directora então da “Elle” e do “Jardin des Modes”, grande amiga de Madame Bardot, escolhe Brigitte para apresentar a moda jovem. Aos 15 anos, torna-se no símbolo juvenil da “Elle”, aparecendo na capa. Marc Allégret, realizador, aprecia as fotos, e convoca-a, mas os pais opõem-se a que ela seja actriz. Foi o avô que a defendeu: “Si cette petite doit un jour être une putain, elle le sera avec ou sans le cinéma, si elle ne doit jamais être une putain, ce n'est pas le cinéma qui pourra la changer! Laissons-lui sa chance, nous n'avons pas le droit de disposer de son destin”. O assistente de Allégret era Roger Vadim. O encontro não leva a filme nenhum na altura, mas a uma paixão entre Vadim e Brigitte. A relação não é bem vista pelos pais, que a querem enviar para Inglaterra. Aproveitando o facto de os pais irem a um concerto, tenta suicidar-se com gás. Foi o acaso do espectáculo ter sido cancelado que lhe salvou a vida: regressados a casa mais cedo, os Bardot salvam a filha, e aceitam não a enviar para Inglaterra, a troco da promessa de ela não casar com Vadim, senão aos 18 anos. O que acontece. Só a 21 de Dezembro de 1952. Estreia-se, entretanto, no cinema, num filme de Jean Boyer, “Le Trou Normand”, num pequeno papael mínimo. Continua em papéis insignificantes, em filmes importantes, ou papéis mais importantes, em filmes insignificantes. Passa pelo teatro, em “L'Invitation au Château”, de Jean Anouilh. Uma experiência falhada, que não irá repetir.

A consagração chega em 1956, quando Roger Vadim e Raoul Lévy escrevem um argumento intitulado “Et Dieu... créa la Femme”. Ninguém queria produzir o filme, mas toda a gente comentava já a beleza provocante de uma jovem que passeava por Cannes. Foi Curd Jürgens, um actor de prestígio na época, que aceitou patrocionar o filme que se iria rodar numa localidade não muito conhecida, Saint-Tropez. O filme iria alterar tudo isso: Brigitte Bardot passaria rapidamente a ser a mundialmente conhecida como BB, lenda e mito do cinema, modelo para a estátua da República Francesa, sex-symbol international, paradigma para a juventude. Saint-Tropez passava a ser destino de eleição na Riviera Francesa. Vadim seria realizador do momento. Consta que um caso com Jean-Louis Trintignant iria precipitar o divórcio com Vadim, a 6 de Dezembro de 1957.
Sobre “E Deus Criou a Mulher”, Vadim disse: “Je voulais, à travers Brigitte, restituer le climat d'une époque, Juliette est une fille de son temps, qui s'est affranchie de tout sentiment de culpabilité, de tout tabou imposé par la société et dont la sexualité est entièrement libre. Dans la littérature et les films d'avant-guerre, on l'aurait assimilée à une prostituée. C'est dans ce film une très jeune femme, généreuse, parfois désaxée et finalement insaisissable, qui n'a d'autre excuse que sa générosité”.
Mal acolhido em França, é exportado para os EUA, onde conhece um triunfo invulgar. Fala-se em “bardotlatria”. Relançado em salas francesas, é agora um sucesso. Os “Cahiers du Cinéma”, que haviam menosprezado o filme e os intérpretes, engolem seco. BB é a francesa mais conhecida na América. A imprensa fala de uma mulher que conjuga o melhor de Marlène Dietrich, de Ava Gardner, de Jane Russell, de Marilyn Monroe, numa mistura explosiva, com uma fantasia pessoal muito própria. Torna-se a mulher fetiche das décadas de 50 e 60 do século XX. O símbolo da emancipação feminina e da liberdade sexual. Mulher-criança, mulher fatal. Uma mescla explosiva que não deixou ninguém indiferente. No feminino, só Simone de Beauvoir ou Françoise Sagan se lhe aproximaram em celebridade. Roda sob as ordens de alguns dos maiores realizadores desse tempo: Sacha Guitry, Marc Allégret, René Clair, Anatole Litvak, Robert Wise, Claude Autant-Lara, Christian-Jaque, Serge Bourguignon, Henri-Georges Clouzot, Jean Cocteau, Louis Malle, Jean-Luc Godard, Édouard Molinaro, Edward Dmytryk, Michel Deville, Robert Enrico, Nina Companeez, para lá do próprio Roger Vadim. Entretanto, a sua vida sentimental é tumultuosa. Durante as filmagens de “Babette Vai à Guerra” (1959), conhece Jacques Charrier, casam e permanecem unidos até 1962. Em 1966, volta a casar com Gunter Sachs, com quem se mantém até ao divórcio, em 1969. Só em 1992 volta a casar, agora com o político de extrema-direita Bernard d'Ormale. Dizem os biógrafos que manteve relações com Jean-Louis Trintignant, Sami Frey, Gilbert Bécaud, Serge Gainsbourg, Sacha Distel, o escritor John Gilmore e o escultor Miroslaw Brozek. Como cançonetista conhece igualmente o sucesso, com temas como "Harley Davidson", "Je Me Donne A Qui Me Plait", "Bubble gum", "Contact", "Je Reviendrais Toujours Vers Toi", "L'Appareil A Sous", "La Madrague", "Le Soleil De Ma Vie", "On Déménage", "Sidonie", "Tu Veux, Tu Veux Pas". Em 1973, com 39 anos, e depois de concluir as filmagens de “L'Histoire très Bonne et très Joyeuse de Colinot Trousse-chemise”, de Nina Companeez, abandona o cinema e retira-se. Sobrevive a um cancro da mama, e torna-se um ferverosa defensora dos direitos dos animais. Em 1986, inaugurou a Fondation Brigitte-Bardot e desenvolve várias campanhas em prol dos animais. Patrocina a série de TV francesa “S.O.S. Animaux”, entre 1989 a 1992. Vegetariana, acaba de completar 80 anos, no meio de algumas polémicas por declarações consideradas extremistas, racistas e xenófobas.


Filmografia:

1952: Le Trou Normand, de Jean Boyer; Manina, la Fille sans Voiles, de Willy Rozier; Les Dents Longues (O Ambicioso), de Daniel Gélin; 1953: Le Portrait de Son Père, de André Berthomieu; Un Acte d'Amour ou Act of Love (Um Gesto de Amor), de Anatole Litvak; Si Versailles m'était conté... (Se Versalhes Falasse), de Sacha Guitry; 1954: Tradita, de Mario Bonnard; Le Fils de Caroline Chérie (As Mulheres e o Rebelde), de Jean-Devaivre; 1955: Futures Vedettes, de Marc Allégret; Doctor at Sea (Uma Garota a Bordo), de Ralph Thomas; Les Grandes Manœuvres (As Grandes Manobras), de René Clair; La Lumière d'en Face, de Georges Lacombe; Cette Sacrée Gamine (Uma Diabo de Saias), de Michel Boisrond; 1956: Mio figlio Nerone, de Steno; En Effeuillant la Marguerite (Desfolhando a Margarida), de Marc Allégret; Et Dieu… Créa la Femme (E Deus Criou a Mulher), de Roger Vadim; La Mariée est Trop Belle (A Noiva Era de Gritos), de Pierre Gaspard-Huit; Hélène de Troie (Helena de Tróia), de Robert Wise; 1957: Une Parisienne (Uma Parisiense), de Michel Boisrond; 1958: Les Bijoutiers du Clair de Lune (Vagabundos ao Luar), de Roger Vadim; En Cas de Malheur (Um caso perdido), de Claude Autant-Lara; 1959: La Femme et le Pantin (A Mulher e o Fantoche), de Julien Duvivier; Babette s'en va-t-en Guerre (Babette vai à guerra), de Christian-Jaque; Voulez-vous danser avec moi ? (Você Quer Dançar Comigo?), de Michel Boisrond; 1960: L'Affaire d'une Nuit, de Henri Verneuil; La Vérité (A Verdade), de Henri-Georges Clouzot; Le Testament d'Orphée, ou ne me demandez pas pourquoi!, de Jean Cocteua (não creditada);1961: La Bride sur le Cou (Uma Mulher Sem Freio), de Roger Vadim; Les Amours Célèbres (Amores Célebres), episódio “Agnès Bernauer”, de Michel Boisrond; 1962: Vie Privée ()Vida Privada, de Louis Malle; Le Repos du guerrier (O Repouso do Guerreiro), de Roger Vadim; 1963: Paparazzi, de Jacques Rozier; Le Mépris (O Desprezo), de Jean-Luc Godard; Une Ravissante Idiote (Uma Encantadora Idiota), de Édouard Molinaro; 1964: Marie Soleil, de Antoine Bourseiller (não creditado); 1965: Dear Brigitte, de Henry Koster; Viva María! (Viva Maria!), de Louis Malle; 1966: Masculin féminin, de Jean-Luc Godard; 1967: À Cœur Joie (Duas Semanas em Setembro), de Serge Bourguignon; 1968: Histoires extraordinaires (Histórias Extraordinárias), episódio “William Wilson”, de Louis Malle; Shalako (Shalako), de Edward Dmytryk; 1969: Les Femmes (As Mulheres), de Jean Aurel; 1970: L'Ours et la Poupée (O Urso e a Boneca), de Michel Deville; Les Novices (As Noviças), de Guy Casaril; 1971: Boulevard du Rhum (Bulevar do Rum), de Robert Enrico; Les Pétroleuses (As Rainhas do Petróleo), de Christian-Jaque; 1973: Don Juan 73 ou si Don Juan était une Femme (Se D. Juan Fosse Mulher), de Roger Vadim; L'Histoire très Bonne et très Joyeuse de Colinot Trousse-chemise (A Vida Alegre de Colinot), de Nina Companeez.

Sem comentários:

Enviar um comentário