segunda-feira, 21 de novembro de 2016

SESSÃO 47: 21 DE DEZEMBRO DE 2016


MÚSICA NO CORAÇÃO (1965)
(na celebração dos 50 anos da sua estreia mundial, a 2 de Março de 1965)

 Há alguns filmes sobre os quais tenho uma recordação ambígua. Este é um deles. Ao longo da vida fui gostando e desgostando. Gostando de Robert Wise (sempre!), gostando e desgostando de tudo o resto, porque a vida é feita de bons e maus humores. Quando somos mais novos, mais radicais, menos dados à sensatez, “The Sound of Music” pode ser pasto de toda a nossa verrinosa maledicência. Que dizer desta empastelada aventura sentimental da família Trapp? Pois nada melhor do que arrear-lhe em cima. Mesmo um cliente habitual e um fanático do melodrama e do “musical” (no teatro ou no cinema) como eu, nunca viu com muito bons olhos esta lamechice da freira cantante que se apaixona pelo barão viúvo com sete filhos e foge dos nazis a cantar num festival de Salzburgo. Mas a verdade é que vi várias vezes o filme, ou excertos do filme (sobretudo nas vésperas de Natal, num qualquer canal de TV). É que “Música no Coração” tem muito que se lhe diga, tanto a peça como, sobretudo, o filme.
“The Trapp Family Singers” foi a biografia escrita por Maria Augusta Trapp, publicada em 1947, quando a família já tinha terminado a sua carreira como cantores, contando as mirabolantes peripécias de uma preceptora de criancinhas que interrompe o seu estágio para freira para descobrir a verdadeira “vida” na casa dos Trapp, com todo o seu caudal de promessas de felicidade e ameaças de tragédia. Com base nesta autobiografia, surgiu na RFA, em 1956, um filme, “Die Trapp-Familie” (ou “The Trapp Family”), assinado por Lee Kresel e Wolfgang Liebeneiner, com argumento de George Hurdalek e Herbert Reinecker, que parece estar na origem do interesse dos produtores norte-americanos. Entre os intérpretes, contava-se a memorável Ruth Leuwerik (no papel de Maria), ao lado de Hans Holt (Barão von Trapp), Maria Holst, Josef Meinrad, Friedrich Domin, Hilde von Stolz, Agnes Windeck, Gretl Theimer, etc. Na estreia, a baronesa Von Trapp, sobrevivente ainda da gesta coral da família, teve uma deixa memorável: “Nada é verdadeiro, mas é tudo maravilhoso!” A música era de Franz Grothe, e a premissa do filme enquadrava-se bem no espírito da reconstrução alemão, “para todos os problemas, há uma solução”.
O realizador Wolfgang Liebeneiner era um homem experimentado neste tipo de obras, e teve um sucesso inequívoco. Há no argumento desta obra um final que deixa supor que a família Trapp fugiu da Alemanha nazi directamente para os EUA, o que não aconteceu na realidade, pois ficaram na Europa e só em 1939 iniciaram a tournée pelos Estados Unidos. Essa estadia daria origem a uma continuação, “Die Trapp-Familie in Amerika” (“The Trapp Family in America”) (1958), desta feita dirigida unicamente por Wolfgang Liebeneiner. Ruth Leuwerik regressaria no papel da Baronesa von Trapp, e Hans Holt, no de Barão von Trapp.
Foram estes filmes, e a biografia escrita, que inspiraram Oscar Hammerstein II a escrever as líricas e Richard Rodgers a compor a música para um guião de Howard Lindsay e Russell Crouse, que subiu a cena no Lunt-Fontanne Theatre (Nova Iorque), em 16 de Novembro de 1959, para iniciar uma carreira épica na história do musical norte-americano. Mary Martin e Theodore Bikel eram os protagonistas inspirados que “conquistaram os corações” de todos os espectadores na noite da estreia, com excepções de alguns críticos que colocaram ressalvas a este espectáculo. Mas, neste caso, os críticos escreveram e a caravana passou incólume. O sucesso estava na rua. Nada o detinha.


“Música no Coração” transformou-se daí em diante, seguramente, num dos mais célebres e rentáveis espectáculos de toda a história do teatro e do cinema musicais. O seu êxito triunfal em (quase) todas as temporadas teatrais e o seu apoteótico sucesso nas salas de cinema, aquando da estreia do filme assinado por Robert Wise, que esteve em Lisboa (quem não recorda?), quase dois anos consecutivos no Tivoli, com sessões esgotadas e espectadores que repetiam a sua visão vezes sem conta, não termina de surpreender tudo e todos. Ninguém se furtou, depois, por exemplo, ao fascínio de um novo lançamento em DVD (com dezenas e dezenas de extras, a explicar como foi o que foi), e ninguém pode negar a genialidade de Robert Wise a conduzir este filme, muito embora alguns possam não suportar o tom algo lamechas e o peso de um argumento que, não sendo convencional, acaba por não se furtar a todos os rodriguinhos do melodrama musical.
Acontece que gosto de melodramas (ah, o Douglas Sirk!) e adoro musicais. Logo, por que não gostar deste “dois em um” que, para mais, tem uma soberba partitura musical? Revisto agora o filme, o que sobressai é realmente a portentosa realização de um mestre, Robert Wise. A sua relação com os cenários, a forma como enquadra, como movimenta a câmara, como dirige os actores, como se serve da sumptuosa paisagem, como estabelece a relação entre as personagens no interior de um mesmo plano (como realiza a “mise-en-scène”, em suma) é realmente brilhante. Depois, a história por vezes arrasta-se nalguns convencionalismos escusados. Mas a verdade é que o filme sobrevive, e sobrevive bem. 50 anos depois, as manifestações mundiais a assinalar a efeméride dão conta desta sobrevivência.
Fui remexer em papéis antigos e descobri uma nota minha, no DN, sobre uma reposição do filme, em Julho de 1977. Não se esqueçam da data e atentem no que escrevi: “Falando do filme, o melhor será passar por cima das aventuras e desventuras da família Trapp (que todos conhecem), para reconhecer a maestria extrema deste produto de uma cinematografia virada essencialmente para o “divertimento para toda a família.” Veiculando uma filosofia da vida de base “pequeno-burguesa”, jogando com os sentimentos e as emoções a seu belo prazer, “The Sound of Music” é, por outro lado, uma verdadeira lição de técnica e de “métier”. Por alguma razão Mao Tse Tung, quando quis que os chineses aprendessem cinema, lhes comprou, entre outras cópias (poucas), uma deste “manual”.


Ora bem: com uma ou outra alteração terminológica, mantenho o que então disse, acrescentando que, trinta anos depois, os chineses demonstraram ter aprendido, e muito bem, a fazer cinema. Robert Wise foi um dos grandes cineastas de Hollywood, um homem que começou a carreira ao lado de Orson Welles (colaborador essencial em “Citizen Kane”) e construiu depois uma filmografia invejável. Sou um seu fã incondicional. Há uns anos, num festival de cinema em Óbidos, ele foi o presidente de um Júri de que eu também fazia parte. Infelizmente adoeci e não pude estar presente nos trabalhos do festival, mas fui a Óbidos conhecê-lo, com o termómetro nos 38, só para ter o prazer de o olhar nos olhos. Afinal ele assinou uma dezena de obras-primas, desde “O Túmulo Vazio” (1945), até “West Side Story” (1961), passando por “Nascido para Matar”, “Nobreza de Campeão”, “O Dia em que a Terra Parou”, “Marcado pelo Ódio”, “Quero Viver”, “Homens no Escuro”, não contando com os ameaços.
Uma informação final: outro filme surgiu na continuação de “Música no Coração”. Foi “Celebrate the Sound of Music”, de 2005, uma realização de John L. Spencer, para televisão, e, tal como o próprio título sugere, trata-se de uma homenagem ao filme, com participação de cantores e personalidades que evocam a obra. Graham Norton era o apresentador, e apareciam vozes de Big Brovaz, Clare Buckfield, Fearne Cotton, Rosemarie Ford, Lesley Garrett, Carrie Grant, Jill Halfpenny, Gloria Hunniford, Bonnie Langford, Jon Lee, Robert Lindsay, Richard McCourt, Linda Robson, Denise Van Outen, entre outras.
Entretanto, surgiu a versão teatral portuguesa de “Música no Coração”, com a assinatura de Filipe La Féria, e com um elenco prestigiado, à frente do qual Lúcia Moniz e Anabela alternam no papel de “A Noviça Rebelde” (título do filme no Brasil). Com a partitura de Oscar Hammerstein II e Richard Rodgers, que contém só “hits” inesquecíveis, o seu bom gosto, o seu sentido do espectáculo, o seu ritmo e a sua direcção de actores desta minha embaraçosa ambiguidade ressaltaram as virtudes e atenuarem-se os lamentos. Esta montagem portuguesa de “Música no Coração” foi verdadeiramente surpreendente e um enorme passo em frente na história do musical em Portugal, mas mais ainda, na história do teatro em Portugal.


MÚSICA NO CORAÇÃO
Título original: The Sound of Music
Realização: Robert Wise (EUA, 1965); Argumento: Ernest Lehman, segundo Howard Lindsay e Russel Crouse (argumento do musical teatral), a partir de Maria von Trapp ("The Story of the Trapp Family Singers"); Produção: Saul Chaplin, Robert Wise, Peter Levathes; Richard D. Zanuck; Música original: Irwin Kostal; Fotografia (cor): Ted D. McCord; Montagem: William Reynolds; Casting: Lee Wallace; Design de produção: Boris Leven; Decoração: Ruby R. Levitt, Walter M. Scott; Guarda-roupa: Dorothy Jeakins; Maquilhagem: Margaret Donovan, Ben Nye, Willard Buell, Ray Forman; Direcção de produção: Saul Wurtzel; Assistentes de realização: Ridgeway Callow, Richard Lang, Maurice Zuberano; Departamento de arte: Glenn 'Skippy' Delfino, Leon Harris, Ed Jones; Som: James Corcoran, Bernard Freericks, Fred Hynes, Murray Spivack; Efeitos especiais: L.B. Abbott, Emil Kosa Jr.; Companhias de produção: Robert Wise Productions (A Robert Wise Production of Rodger and Hammerstein's), Argyle Enterprises; Intérpretes: Julie Andrews (Maria), Christopher Plummer (Capitão Von Trapp), Eleanor Parker (a baronesa), Richard Haydn (Max Detweiler), Peggy Wood (Madre superior), Charmian Carr (Liesl), Heather Menzies-Urich (Louisa), Nicholas Hammond (Friedrich), Duane Chase (Kurt), Angela Cartwright (Brigitta), Debbie Turner (Marta), Kym Karath (Gretl), Anna Lee, Portia Nelson, Ben Wright, Daniel Truhitte, Norma Varden, Gilchrist Stuart, Marni Nixon, Evadne Baker, Doris Lloyd, Gertrude Astor, Alan Callow, Sam Harris, Jeffrey Sayre, etc. Duração: 174 minutos; Classificação etária: M/ 6 anos; Distribuição em Portugal (DVD e BluRay): Twentieth Century Fox / Pris Audiovisuais; Data de estreia em Portugal: 10 de Janeiro de 1966. 


JULIE ANDREWS (1935 - )
Julia Elizabeth Wells nasceu a 1 de Outubro de 1935, em Walton-on-Thames, Surrey, em Inglaterra. O pai, Edward Charles "Ted" Wells, era professor de trabalhos manuais, e a mãe, Barbara Ward Wells, pianista. Com dois anos de idade, começou a estudar dança com uma tia, Joan. Aos quatro anos, os pais divorciaram-se, ela ficou com a mãe e o padrasto, Ted Andrews, um cantor e artista de vaudeville, a quem foi buscar o seu novo nome. Ted Andrews descobriu que ela possuía uma bela voz que, devidamente trabalhada, iria torná-la famosa em toda Inglaterra. Teve então aulas de canto com Madame Lilian Stiles-Allen. Muito jovem ainda, estreou-se nos teatros do West End, em Londres, na década de 40, viajando depois para os EUA, lançando-se na Broadway em 1954 com o musical "The Boyfriend". Depois de passar pela televisão e de se estrear no cinema, Julie Andrews tornou-se a única actriz a ter vencido um Oscar num filme de Walt Disney, no musical “Mary Poppins” (1964), que lhe abriu as portas do sucesso. Mas, no ano seguinte, “Musica n Coração”, um dos maiores êxitos de bilheteira de todos os tempos, catapulta-a para a glória. Rende-lhe várias nomeações para Oscars, Globos e outros prémios, e cimenta a sua reputação como actriz, cantora, bailarina, diretora teatral e escritora.
Casada com Tony Walton (1959-1967) e, posteriormente, com o realizador Blake Edwards (1969-2010), com quem trabalhou imenso, em vários filmes: “Darling Lili”, “The Tamarind Seed”, “The Pink Panther Strikes Again”, “Ten”, “S.O.B.”, “Victor Victoria”, “Trail of the Pink Panther”,  “The Man who Loved Women” ou “That's Life!”. Mas Julie Andrews participou ainda noutros filmes particularmente interessantes: “The Americanization of Emily", "Hawaii", "Torn Curtain", “Thoroughly Modern Millie" ou "Star!".
Sobre “Mary Poppins” e “My Fair Lady” há uma história curiosa a relembrar. Quem interpretou “My Fair Lady” no teatro foi Julie Andrews. Quando a Warner projectou a adaptação a cinema, escolheu Audrey Hepburn para protagonista. Esta, inicialmente, recusou, dizendo que teria de ser Julie Andrews a repetir no cinema o seu trabalho no teatro. Mas Jack Warner não aceitou a sugestão e contra-atacou: ou Audrey Hepburn aceitava, ou seria Elizabeth Taylor a ficar com o papel. Na sessão de entrega dos Oscars, estavam as duas nomeadas, e seria Julie a receber a estatueta. Ganharia também o Globo de Ouro para Melhor Actriz em filme musical, e, ao receber este prémio, Julie Andrews “vingou-se” com muito estilo. Agradeceu a Jack Warner, “pois graças a ele ter-lhe recusado o papel principal em “My Fair Lady”, ela pode aceitar interpretar “Mary Poppins”, e assim receber aquele prémio”.
Julie Andrews foi homenageada pela Rainha Elizabeth II com a Ordem do Império Britânico em 31 de dezembro de 1999, além de também ter sido eleita, em 2002, uma das 100 maiores personalidades britânicas de todos os tempos, ocupando a 59ª posição. Além de um Oscar para melhor actriz, conquistou cinco Globos de Ouro, três Grammys e dois Emmys, entre muitos outros prémios.
Em 1997, após uma cirurgia à garganta, viu afectadas as suas cordas vocais, o que a deixou profundamente deprimida, e a fez recorrer a um acompanhamento psicológico. Interrompeu a carreira, mas voltaria depois, sobretudo ao teatro. No cinema passou sobretudo a emprestar a sua voz a personagens de filmes de animação. Andrews também escreve livros infantis, e em 2008 publicou uma autobiografia intitulada "Home: A Memoir of My Early Years".
Pela sua contribuição à indústria cinematográfica, Andrews possui uma estrela no Wall of Fame, em Hollywood Boulevard, junto ao nº 6901. Na cerimónia dos Osacres de 2015 recebeu um tributo que lhe foi entregue por Lady Gaga que interpretou um conjunto de temas de “The Sound of Music”.


Filmografia

Como actriz: 1949: La rosa di Bagdad, de Anton Gino Domenighini (voz); 1953: Television Christmas Party (TV); 1956: Ford Star Jubilee (TV); 1957: Cinderella (TV); 1959: The Gentle Flame (TV); 1964: The Americanization of Emily (Herói Precisa-se), de Arthur Hiller; Mary Poppins (Mary Poppins), de Robert Stevenson; 1965: The Sound of Music (Música no Coração), de Robert Wise; 1966: Hawaii (Hawaii), de George Roy Hill; 1966: Torn Curtain (Cortina Rasgada), de Alfred Hitchcock; 1967: Thoroughly Modern Millie (Millie, Rapariga Moderna), de George Roy Hill; 1968: Star! (A Estrela!), de Robert Wise; 1970: Darling Lili (Querida Lili), de Blake Edwards; 1974: The Tamarind Seed (A Semente de Tamarindo), de Blake Edwards; 1976 A Pantera volta a atacar (The Pink Panther Strikes Again), de Blake Edwards (voz, não creditada); 1979: Ten (10 - Uma Mulher de Sonho) de Blake Edwards; 1980: Little Miss Marker (Jogar para Ganhar), de Walter Bernstein; 1981: S.O.B. (Tudo Boa Gente), de Blake Edwards; 1982: Victor Victoria (Victor/Victoria), de Blake Edwards; Trail of the Pink Panther (Na Pista da Pantera), de Blake Edwards (voz, não creditada); 1983: The Man who Loved Women (Os meus Problemas com as Mulheres), de Blake Edwards; 1986: Duet for One (Dueto só para um), de Andreï Kontchalovski; 1986: That's Life! (A Vida É Assim), de Blake Edwards; 1991: Our Sons (Os Filhos da Sida), de de John Erman (TV); 1992: Julie (TV); Cin cin ou A Fine Romance, de Gene Saks; 1995: Victor/Victoria (TV); One Special Night (TV); 2000: Relative Values, de Eric Styles; 2001: The Princess Diaries (O Diário da Princesa), de Garry Marshall; On Golden Pond (TV); 2002: Paraíso Filmes (TV); 2003: Unconditional Love (Quem Matou o Nosso Amante?) de P. J. Hogan; Eloise at Christmastime (TV); Eloise at the Plaza (TV); 2004: Shrek 2 (Shrek 2), de Andrew Adamson (voz); The Princess Diaries 2: Royal Engagement (O Diário da Princesa: Noivado Real) de Garry Marshall; The Cat That Looked at a King (Vídeo); Great Performances (TV) Cinderella; 2007: Shrek 3 (Shrek o Terceiro), de Chris Miller (voz); Enchanted (Uma História de Encantar) de Kevin Lima (narradora); 2010: Shrek Forever After (Shrek Para Sempre) de Mike Mitchell (voz); Despicable Me (Gru - O Maldisposto) de Chris Renaud e Pierre Coffin (voz); Tooth Fairy (A Fada dos Dentes) de Michael Lembeck;

SESSÃO 48: 26 DE DEZEMBRO DE 2016


TESS (1979)

“Tess of the d'Ubervilles”, escrito em 1891, é um dos mais conhecidos romances de Thomas Hardy, poeta e romancista inglês (1840-1928), nascido em Higher Bockhampton, Dorset, e falecido em Max Gate, Dorchester. Thomas Hardy, oriundo de uma família de classe média rural (o pai era construtor civil e viveram sempre no campo), assinou um conjunto de obras que se destacam no panorama da literatura inglesa dos séculos XIX e XX, como “Longe da Multidão” Estulta (1874), “O Prefeito de Casterbridge: A Vida e a Morte de um Homem de Carácter” (1886), “The Woodlanders” (1887), “Wessex Tales” (1888), o já referido “Tess of the d'Ubervilles” (1891), “Judas, O Obscuro” (1895) ou a antologia de poemas “Wessex Poems and other Verses” (1898). Os estudiosos da sua obra, quando a ele se referem, salientam “o pessimismo radical que caracteriza os seus romances”. De certa forma combatente contra uma tradição romântica, Hardy procurou uma escrita de tonalidades realistas, onde o retrato psicológico de personagens, sobretudo femininas, e de situações sociais muito definidas mostrasse bem a repressão social e sexual de uma sociedade injusta e preconceituosa como era aquela em que vivia e de que deu testemunho. Foi por isso considerado o "último dos grandes vitorianos".
Muitos dos seus romances e contos têm sido adaptados ao cinema e à televisão, com particular destaque para “Tess”, com versões desde 1913, “Longe da Multidão” (a primeira adaptação data de 1915) ou “The Mayor of Casterbridge” (1921). Mas as obras mais importantes retiradas de livros seus terão sido "Far from the Madding Crowd”, na versão de 1968, realizada por John Schlesinger, com Julie Christie, Peter Finch e Alan Bates, e a de 2015, dirigida por Thomas Vinterberg, com Carey Mulligan, Matthias Schoenaerts e Michael Sheen; “Jude”, de Michael Winterbottom, com Christopher Eccleston, Kate Winslet e Liam Cunningham; e “Tess”, de Roman Polanski, rodado em 1979, interpretado por Nastassja Kinski, Peter Firth e Leigh Lawson, com argumento escrito pelo próprio Polanski, de colaboração com Gérard Brach, seu cúmplice de sempre, e John Brownjohn.
Este era um projecto antigo do realizador franco-polaco, que já acalentava o desejo de levar Thomas Hardy ao ecrã quando ainda vivia na América, casado com Sharon Tate. Por isso esta obra de 1979 é dedicada a Sharon. Polanski nasceu em Paris, mas aos 3 anos de idade viajou para a Polónia, onde, em 1939, viu a família ser apanhada pelos nazis e posteriormente levada para campos de concentração, com sorte diferente: a mãe foi assassinada, o pai sobreviveu. Ele viveu como vagabundo, escondido em aldeias e florestas, até que, no final da guerra, ingressou no cinema, primeiro como actor, depois como realizador de curtas-metragens e da longa “A Faca na Água”, com que se torna notado internacionalmente. Viajou pela Europa, rodou “Repulsa” e “Cul-De-Sac - O Beco”, entre 1965 e 1966, em Inglaterra. Com “Por Favor Não Me Mordam o Pescoço” ligou a Inglaterra aos EUA, onde se instalou a partir de 1968, rodando inicialmente o perturbante “A Semente do Diabo”. Por essa altura, era casado com Sharon Tate, assassinada barbaramente pelo gang Mason, em 1969. Em 1974, filma um dos seus filmes mais carismáticos, o policial “Chinatown”, mas, acusado de ter violado uma jovem, foge dos EUA e da ordem de prisão, refugiando-se na Europa, onde prossegue uma carreira internacional. “O Inquilino”, “Tess”,”Piratas”, “Frenético”, “Lua de Mel, Lua de Fel” ou “A Noite da Vingança” são títulos deste período que culmina com outro grande sucesso seu, “O Pianista”, obra bastante autobiográfica, que recorda os seus tempos de criança no gueto de Varsóvia. Seguem-se “Oliver Twist”, “O Escritor Fantasma”, “O Deus da Carnificina” e “Vénus de Vison”, o que demonstra bem o pendor literário deste cineasta. Pendor literário que se manifesta abertamente em “Tess”, cuja história e retrato social se aproxima muito de “Oliver Twist” e do universo de Charles Dickens, ainda que este último tenha vivido apenas em pleno século XIX (ao contrário de Thomas Hardy, que abrangeu as três décadas iniciais do século XX).


“Tess” passa-se numa região fictícia criada por Thomas Hardy, o Wessex, e que está presente em várias obras suas. Mas estamos na Inglaterra rural do século XIX, e tudo aponta que a região seja a de Dorset, onde o escritor nasceu. Acontece que Polanski teve dificuldades em filmar nesse cenário natural, pois as transformações que se produziram entre o fim do século XIX e a actualidade foram radicais. Por isso, com o diretor artístico Pierre Guffroy, Polanski reconstituiu as paisagens britânicas nas regiões francesas da Bretanha e Normandia, onde encontraram explorações agrícolas que se assemelhavam em muito às inglesas de então. Importaram terra de Dorset para cobrir as estradas, transplantaram árvores e arbustos para reproduzir fielmente a paisagem requerida. Mesmo os actores passaram semanas a aprender ofícios ligados à lavoura e à agricultura, para melhor se identificarem com os personagens. Depois de muitos meses de preparação, as filmagens duraram mais oito meses, para desta forma se conseguir restituir o ritmo das estações do ano.
Tess (Nastassja Kinski), uma jovem camponesa de rara beleza e elegância, descendente de uma enorme e pobre família rústica, os Durbeyfields, com um pai dado à bebida, descobre que afinal fazem parte de uma abastada família vizinha, os d'Urberville. Procurando tirar partido dessa associação, e fazendo-se valer da beleza e do discreto fascínio de Tess, esta é enviada a casa de um primo, Alec d'Urberville (Leigh Lawson), que se prende de amores por ela, a seduz e viola. Alec nem é afinal nenhum d'Urberville de gema, apenas teria comprado o título, mas a verdade é que a intriga se entrelaça em situações de miséria moral e material, acabando Tess por atravessar um calvário bem próprio da condição da mulher neste final de seculo XIX. Hoje custa a acreditar nesta história, mas muitas são as fontes que corroboram tais situações de extrema dependência e preconceito.
O filme é de uma beleza invulgar, jogando com cenários naturais verdadeiramente sufocantes, restituídos através de uma fotografia admirável de Ghislain Cloquet (falecido durante a rodagem) e Geoffrey Unsworth. A interpretação de Nastassja Kinski é magnífica, numa mistura de tenacidade e ingenuidade, de voluntarismo e de luta contra a adversidade. Mas, a seu lado, Peter Firth (Angel Clare), Leigh Lawson (Alec d'Urberville), John Collin (John Durbeyfield),  Rosemary Martin, Carolyn Pickles, Richard Pearson, David Markham, Pascale de Boysson, e restante elenco são notáveis.
O sucesso de “Tess” a nível internacional foi grande. Nos Oscars, congregou seis nomeações, vencendo em três categorias (melhor direção artística, melhor fotografia e melhor guarda-roupa), e ficando sem estatueta nas categorias de melhor filme, melhor realizador e melhor partitura musical original. Nos BAFTAS, ganhou a melhor fotografia (fora ainda nomeado para melhor direção artística e melhor guarda-roupa) e nos Cesars foi considerado melhor filme, melhor realizador e melhor fotografia. Tendo ainda sido nomeado para melhor atriz, melhor design de produção e melhor partitura musical. Venceu ainda os Globos de Ouro como melhor filme em língua não inglesa e nova estrela do ano em cinema (Nastassja Kinski). Foi ainda nomeado para melhor realizador (cinema) e melhor atriz de cinema (drama), Nastassja Kinski.


TESS
Título original: Tess
Realização: Roman Polanski (França, Inglaterra, 1979); Argumento: Gérard Brach, Roman Polanski, John Brownjohn, segund romance de Thomas Hardy ("Tess of the d'Urbervilles"); Produção: Claude Berri, Timothy Burrill, Pierre Grunstein, Jean-Pierre Rassam; Música: Philippe Sarde; Fotografia (cor): Ghislain Cloquet, Geoffrey Unsworth; Montagem: Alastair McIntyre, Tom Priestley; Casting: Mary Selway; Design de produção: Pierre Guffroy; Direcção artística: Jack Stephens;Guarda-roupa: Anthony Powell;Maquilhagem: Alain Bernard, Didier Lavergne, Paul Le Marinel, Ludovic Paris; Direcção de Produção: Alain Depardieu, Paul Maigret,Tadek Zietara; Assistentes de realização: Hercules Bellville, Thierry Chabert, Romain Goupil, Hugues de Laugardière; Departamento de arte: Marcel Laude, Pierre Lefait, Jean-Claude Sévenet; Som: Hervé de Luze, Maurice Gilbert, Louis Gimel, Peter Horrocks, Jean-Pierre Lelong, Jean Nény, Alex Pront, Robert Rietty, Jean-Pierre Ruh, David Watts; Efeitos visuais: Frederic Moreau; Companhias de produção: Renn Productions, Timothy Burrill Productions, Société Française de Production (SFP); Intérpretes: Nastassja Kinski (Tess), John Collin (John Durbeyfield), Tony Church (Parson Tringham), Brigid Erin Bates (rapariga), Jeanne Biras (rapariga), Peter Firth (Angel Clare), John (Felix Clare), Tom Chadbon (Cuthbert Clare), Rosemary Martin (Mrs. Durbeyfield), Geraldine Arzul, Stephanie Treille, Elodie Warnod, Ben Reeks,Jack Stephens, Leigh Lawson (Alec d'Urberville), Lesley Dunlop, Maryline Even, Jean-Jacques Daubin, Sylvia Coleridge, Jacob Weizbluth, Peter Benson, Jacques Mathou, Véronique Alain, Richard Pearson, Fred Bryant, John Barrett, Anne Tirard, Carolyn Pickles, Suzanna Hamilton, Caroline Embling, Josine Comellas, Arielle Dombasle, David Markham, Pascale de Boysson, Gordon Richardson, Patsy Smart, Dicken Ashworth, Jimmy Gardner, Reg Dent, John Gill, Forbes Collins, Keith Buckley, John Moore, Patsy Rowlands, Graham Weston, Lina Roxa, etc. Duração: 186 minutos; Distribuição em Portugal: LNK (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 30 de Outubro de 1980. 
 

NASTASSJA KINSKI (1961 - )
Nastassja Aglaia Nakszynski nasceu a 24 de Janeiro de 1961, em Berlim, na RFA. (Mas existem fontes que dão como certo o ano de 1959 para o efeito). Filha do actor Klaus Kinski e de Ruth Brigitte Tocki. Infância problemática. Em 2013, a irmã de Nastassia, Pola, denunciou agressões sexuais praticadas pelo pai e a própria Nastassja declarou que ele também a tocava e a aterrorizava. Aos 14 anos, interpreta o seu primeiro filme, “Movimento em Falso”, de Wim Wenders, com quem voltaria a trabalhar, anos mais tarde, em “Paris, Texas” e “Tão Longe, Tão Perto”. Entretanto torna-se notada como modelo, estuda arte dramática em Londres e em Nova Iorque, no Actors Studio de Lee Strasberg, tendo como padrinho Roman Polanski, com quem ela havia tido uma relação. As fotos de Nastassja, tiradas por Polanski, e aparecidas na “Vogue” do Natal de 1976, provocaram grande sucesso. Ainda nos seus tempos de adolescente, em Berlim, chegou a passar alguns dias na prisão, por andar clandestinamente nos transportes públicos e ter-se recusado a fazer trabalho cívico num hospital. Entretanto, a sua carreira arranca de forma fulgurante em finais da década de 70, com um magnífico conjunto de títulos, a começar por “Tess”, de Roman Polanski (1979), “One from the Heart”, de Francis Ford Coppola (1982), “Cat People”, de Paul Schrader (1982), “Exposed”, de James Toback; “La Lune dans le caniveau”, de Jean-Jacques Beineix; “The Hotel New Hampshire, “Maria's Lovers”, de Andreï Kontchalovski, ou “Paris, Texas”, de Wim Wenders (1984). Por esta altura, Nastassja Kinski era uma grande vedeta internacional que muitos comparavam às mais míticas, Garbo ou Marlène, Ingrid Bergman ou Marilyn. Entretanto tem uma relação como o actor italiano, Vincent Spano, de que nasce um filho, Aljosha Kinski (1984). Casa-se nesse ano com o produtor Ibrahim Moussa que adopta a criança. Ambos terão um novo filho, em 1986, desta feita uma menina, Sonia Moussa. Após o divórcio, em 1992, uma ligação com Quincy Jones resulta noutra filha, Kenya, nascida em 1993. A sua carreira sofre um pouco com os sobressaltos da vida privada e igualmente com alguns insucessos. Vira-se mais para a Europa, em filmes menos interessantes, aparece mais na televisão, e ultimamente parece ter trocado a carreira de actriz pela de mãe, vivendo em Los Angeles, na Califórnia. Foi membro dos júris de Cannes (1988) e de San Sebastian (2014). É militante convicta da Cruz Vermelha Internacional, que apoia financeiramente e com acções mediáticas. Fala correntemente alemão, inglês, francês, italiano e russo.

Filmografia
Como Actriz / Cinema: 1975: Falsche Bewegung (Movimento em Falso), de Wim Wenders; 1976: To the Devil a Daughter (O Emissário do Diabo) de Peter Sykes; For Your Love Only, de Wolfgang Petersen; 1978: Leidenschaftliche Blümchen (Colégio de Jovens), de André Farwagi; Così come sei (Francesca, um Amor Impossível), de Alberto Lattuada; 1979: Tess (Tess), de Roman Polanski; 1982: One from the Heart (Do Fundo do Coração), de Francis Ford Coppola; Cat People (A Felina) de Paul Schrader; 1983: Frühlingssinfonie (Sinfonia da Primavera), de Peter Schamoni; Exposed (Revelação), de James Toback; La Lune dans le caniveau (A Lua na Valeta), de Jean-Jacques Beineix; 1984: Unfaithfully Yours (Infielmente Tua), de Howard Zieff; The Hotel New Hampshire (Hotel New Hampshire), de Tony Richardson; Paris, Texas (Paris, Texas), de Wim Wenders; Maria's Lovers (Os Amantes de Maria), de Andreï Kontchalovski; 1985: Revolution (Revolução), de Hugh Hudson; Harem (Harém), de Arthur Joffé; 1987: Maladie d'amour de Jacques Deray; 1989: Magdalene de Monica Teuber; Torrents of Spring, de Jerzy Skolimowski; 1989: In una notte di chiaro di luna (Morte Silenciosa) de Lina Wertmüller; 1990: L'Alba, de Francesco Maselli; Il Segreto, de Francesco Maselli; Il Sole anche di notte, de Paolo Taviani & Vittorio Taviani; 1991: Unizhennye i oskorblyonnye, de Andrei Eshpaj; 1992: In camera mia, de Luciano Martino; La Bionda, de Sergio Rubini; 1993: In weiter Ferne, so nah! (Tão Longe, Tão Perto), de Wim Wenders; 1994: Crackerjack (Rápido e Mortal), de Michael Mazo; Terminal Velocity (Velocidade Terminal), de Deran Sarafian; 1996: Somebody Is Waiting (Alguém Esperará por Ti), de Martin Donovan; 1997: Fathers' Day (O Dia dos Pais), de Ivan Reitman; Little Boy Blue (Um Rapaz, um Destino), de Antonio Tibaldi; One Night Stand (Cúmplice à Noite) de Mike Figgis; 1998: Ciro norte, de Erich Breuer (curta-metragem); Savior (Savior, Mercenário Americano), de Predrag Antonijevic; Your Friends & Neighbors (Amigos e Vizinhos), de Neil LaBute; Susan's Plan (P.F. Matem o meu marido), de John Landis; 1999: Playing by Heart (Entre Estranhos e Amantes), de Willard Carroll; The Lost Son, de Chris Menges; The Intruder, de David Bailey; 2000: The Magic of Marciano, de Tony Barbieri; 2000: Red Letters (Cartas Vermelhas), de Bradley Battersby; Time Share, de Sharon von Wietersheim; The Claim, de Michael Winterbottom; 2001: Cold Heart de Dennis Dimster; Town & Country (Sedução de Morte), de Peter Chelsom; An American Rhapsody (Uma Rapsódia Americana), de Éva Gárdos; Say Nothing (Não Digas Nada!), de Allan Moyle; Diary of a Sex Addict ou Le journal d'un obsédé sexuel (Diário de Um Viciado em Sexo), de Joseph Brutsman; 2001: Beyonds the City Limits) de Gigi Gaston; 2002: .com for Murder de Nico Mastorakis; 2003: Paradise Found, de Mario Andreacchio; 2004: À ton image (À Tua Imagem), de Aruna Villiers; 2006: Inland Empire (Inland Empire), de David Lynch; 2007: More Things That Happened (Vídeo); 2012: Il turno di notte lo fanno le stelle (curta-metragem); 2013: I Sugar, de Rotimi Rainwater;

Televisão: 1977: Tatort (Reifezeugnis); Notsignale; 1996: The Ring, de Armand Mastroiani; The Great War and the Shaping of the 20th Century; 1997: Les Bella Mafia; 1999: Brigade des mineurs; 2000: Quarantine; A Storm in Summer (Um Verão diferente), de Robert Wise; 2001: Washington Police; The District; Cold Heart; The Day the World Ended, de Terence Gross; Blind Terror, de Giles Walker; 2002: All Around the Town, de Paolo Barzman; 2003: Les Liaisons dangereuses, de Josée Dayan; 2004: La Femme Musketeer (A Filha do Mosqueteiro), de Steve Boyum. 

SESSÃO 46: 12 DE DEZEMBRO DE 2016


A HISTÓRIA DE ADELE H. (1975)

"A História de Adéle H.", partindo de factos concretos e de personagens reais, nomeadamente a filha de Victor Hugo, recria uma história de "amor louco", que progride até à demência, desenvolvendo-a com a sensibilidade, o pudor e o doloroso olhar que a figura frágil e teimosa de Adele Hugo requeria, baseando-se, para tanto, numa biografia dessa mulher misteriosa e no seu diário íntimo. Os pontos de contacto com "O Menino Selvagem" do mesmo Truffaut são frequentes, não só ao nível da construção do próprio filme, que se estrutura sobre textos, como ainda no tratamento dado à figura central desta obra, que tem semelhanças indiscutíveis com "L'Entant Sauvage".
Trata-se, aliás, de dois filmes sobre personagens marginalizadas "a contre coeur", que tentam reentrar na sociedade, ainda que recusando as regras e os padrões da vida estipulados. Adéle H. persegue um amor impossível, o que ela não aceita e contraria por todas as formas ao seu alcance, num percurso de trágicas ressonâncias. Para Adéle H., o tenente Pinson funciona como ideal a atingir, como meta a alcançar. Para o conseguir, para "tocar" essa ideia que lentamente se vai fixando no seu espírito. Adéle mobiliza todo o seu ser, toda a sua vontade, todo o seu amor. O que torna esta "historia" uma aventura de limites dúbios, oscilando entre a história de amor, romântica e excessiva, e a loucura. Limites que continuamente se esbatem, reservando-se ao espectador a liberdade de uma interpretação, de um juízo que, todavia, se sabe precário e falível. O que faz o fascínio desta obra que escorrega voluptuosamente por entre os dedos, desafiando o público, propondo-lhe o conhecimento (sempre improvável) de um rosto de mulher que intransigentemente caminha para o abismo, que o reconhece e, todavia, prossegue.


De resto, "A História de Adéle H." é uma admirável viagem ao século XIX, reconstituindo com minúcia um tempo, uma ambiência, o colorido de uma época, o pulsar de uma geração, Para o que a fotografia de Nestor Almendros e a música de Maurice Jaubert se revelam auxiliares indispensáveis, bem assim como a presença absorvente de lsabelle Adjani, um olhar macerado e dorido, iluminado, porém, pela esperança nunca destruída. Um filme secreto, que nos restitui Truffaut num ponto alto da sua carreira.

A HISTÓRIA DE ADÈLE H.
Título original: L'histoire d'Adèle H.
Realização: François Truffaut (França, 1975); Argumento: François Truffaut, Jean Gruault, Suzanne Schiffman, Frances Vernor Guille, segundo “Diário”, de Adèle Hugo; Música: Maurice Jaubert, Patrice Mestral, Jacques Noureddine, François Porcile; Fotografia (cor): Néstor Almendros; Montagem: Martine Barraqué, Yann Dedet, Jean Gargonne, Michèle Neny, Muriel Zeleny; Design de produção: Jean-Pierre Kohut; Guarda-roupa: Jacqueline Guyot;  Maquilhagem: Chantal Durpoix, Thi-Loan Nguyen; Direcção de Produção: Marcel Berbert, Claude Miller, Patrick Millet, Roland Thénot; Assistentes de realização: Carl Hathwe, Suzanne Schiffman; Departamento de arte: Daniel Braunschweig; Som: Michel Laurent, Jacques Maumont, Jean-Pierre Ruh; Companhias de produção: Les Artistes Associés, Les Films du Carrosse, Les Productions Artistes Associés; Intérpretes: Isabelle Adjani (Adèle Hugo / Adèle Lewly), Bruce Robinson (Lt Albert Pinson), Sylvia Marriott (Mrs. Saunders), Joseph Blatchley (Mr. Whistler), Ivry Gitlis (Hipnotista), Louise Bourdet  (criada de Victor Hugo), Cecil De Sausmarez (Mr. Lenoir), Ruben Dorey (Mr. Saunders), Clive Gillingham (Keaton), Roger Martin  (Dr. Murdock), M. White (Coronel), Pierre Leursse, Geoffroy Crook, Chantal Durpoix, Raymond Falla, David Foote, Jacques Frejabue, Carl Hathwell, Edward J. Jackson, Aurelia Mansion, Thi-Loan Nguyen, François Truffaut (oficial), Ralph Williams, etc. Duração: 96 minutos; Distribuição em Portugal: LNK / MGM; Classificação etária: M/ 12 anos.


ISABELLE ADJANI (1955 - )
Isabelle Adjani é seguramente uma das mais belas e talentosas actrizes francesas de sempre, e uma das mais premiadas. De uma beleza serena, mas de um temperamento tempestuoso, Adjani escolhe e é escolhida para papéis de personagens nevróticas, intensas, por vezes frágeis, por vezes perturbadas, misteriosas, sufocadas pelo peso das convenções da sociedade. Foi das actrizes francesas de mais rápida ascensão e de maior fulgor ao longo das décadas.
Isabelle Yasmine Adjani nasceu a 27 de Junho de 1955 em Paris, França, filha de Mohammed Chérif Adjani, argelino, e de Emma Augusta Schweinberger, alemã. Desde muito jovem se sentiu impelida a representar. Cresceu em Gennevilliers, estudou no colégio Paul-Lapie em Courbevoie depois no liceu Jean-Jaurès, em Reims. Aos 12 anos era actriz de teatro amador, aos 14 surge num primeiro filme, “Le Petit Bougnat”, de Bernard Toublanc-Michel. Aos 17, já a vamos encontrar na televisão francesa, mas o seu primeiro grande triunfo terá sido no teatro, no palco da Comédie Française, onde interpretou personagens criadas por Molière e Lorca. Em 1974, ganha reputação no cinema, com “La Gifle”, mas é no ano seguinte, ao interpretar o papel principal em “A História de Adele H”, de François Truffaut, onde revive a figura da filha do escritor Victor Hugo, que atinge a glória nacional e internacional. Recebeu a primeira nomeação para o Oscar de Hollywood (a segunda, anos mais tarde, seria para o seu magnífico trabalho em “Camille Claudel”). Os prémios sucedem-se: em 1981, Adjani recebe o prémio de melhor actriz do Festival de Cannes pela sua participação em “Quarteto”. No ano seguinte, recebeu o César por “Possessão”, em actuação considerada pelos críticos a melhor de sua carreira, senão a mais difícil, porque Adjani interpretava o papel de uma mulher frustrada que enlouquecia aos poucos. Em 1983, recebeu novamente o “César” por “Verão Assassino”. Em 1989, coproduziu e interpretou “Camille Claudel”, história romanceada da escultora que se relacionou com o escultor francês Auguste Rodin. O filme de Bruno Nuytten valeu-lhe um terceiro César e mais uma nomeação para o Oscar de melhor actriz, além de concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro. No mesmo ano, a revista americana “People” incluiu-a entre as 50 mulheres mais bonitas do mundo. O quarto César vai surgir em 1994, com “Rainha Margot” e o quinto é-lhe atribuído em 2010, pelo filme “La Journée de la jupe”. Nunca nenhuma outra actriz conseguiu até hoje tal feito: cinco César e ainda outras nomeações. Foi considerada a melhor actriz no Festival de Cannes de 1981, e no Festival de Berlim de 1989. Ganhou o David di Donatello em 1975, o prémio do National Board of Review, de 1975 e ainda, no mesmo ano, o New York Film Critics Circle Awards. Ganhou, em 1983, o prémio de melhor actriz do Fantasporto. Adjani tem dois filhos, Barnabé, do seu casamento com Bruno Nuytten, e Gabriel-Kane, de uma tempestuosa relação com o actor britânico Daniel Day-Lewis. Teve ainda uma relação prolongada com o compositor Jean Michel Jarre.  


Filmografia
Como actriz: 1970: Le Petit Bougnat, de Bernard Toublanc-Michel; 1972: Faustine et le Bel Été (Desejo de Amar), de Nina Companéez; 1973: L'école des femmes (TV); 1974: Ariane ou Espace zéro, de Pierre-Jean de San Bartholomé; La Gifle, de Claude Pinoteau; Le secret des Flamands (TV); L'avare (TV); 1975: L'Histoire d'Adèle H. (A História de Adèle H.), de François Truffaut; Ondine (TV); 1976: Barocco (Escândalo de Primeira Página), de André Téchiné; Le Locataire (O Inquilino), de Roman Polanski; 1977: Violette et François (Violette & François), de Jacques Rouffio; 1978: Driver (O Profissional), de Walter Hill; 1979: Nosferatu, fantôme de la nuit (Nosferatu, o Fantasma da Noite), de Werner Herzog; Les Sœurs Brontë (As Irmãs Bronte), de André Téchiné; 1981: Clara et les Chics Types, de Jacques Monnet; Quartet (Os anos Loucos de Montparnasse), de James Ivory; Possession (Possessão), de Andrzej Zulawski; L'Année prochaine... si tout va bien (Um Casamento Muito Especial), de Jean-Loup Hubert; 1982: Tout feu, tout flame (A Vida É Uma Festa), de Jean-Paul Rappeneau; 1982: Antonieta, de Carlos Saura; The Last Horror Film, de David Winters (não creditada); 1983: Mortelle Randonnée, de Claude Miller; L'Été meurtrier (O Verão Assassino), de Jean Becker; 1984: Pull marine (curta-metragem); 1985: Subway (Subterrâneo), de Luc Besson; 1986: T'as de beaux escaliers, tu sais, de Agnès Varda (curta-metragem); 1987: Ishtar (Ishtar), de Elaine May; 1988: Camille Claudel (A Paixão de Camille Claudel), de Bruno Nuytten; 1989: L'Après-Octobre, de Merzak Allouache (documentário); 1990: Lung Ta: les Cavaliers du vent, de Marie-Jaoul de Poncheville (narração); 1993: Toxic Affair, de Philomène Esposito; 1994: La Reine Margot (A Raínha Margot), de Patrice Chéreau; 1996: Diabolique (Diabólica), de Jeremiah S. Chechik; 1998: Paparazzi, de Alain Berbérian; 1999: Bonne Nuit (TV); 2002: La Repentie, de Laetitia Masson; 2002: Adolphe, de Benoît Jacquot; 2003: Bon Voyage (Boa Viagem), de Jean-Paul Rappeneau; 2003: Monsieur Ibrahim et les Fleurs du Coran, de François Dupeyron; Figaro (TV); 2009: La Journée de la jupe (O Dia da Saia), de Jean-Paul Lilienfeld (TV); 2010: Mammuth, de Benoît Delépine e Gustave de Kerver; Guibert cinéma, de Anthony Doncque (documentário - narração);Raiponce, de Nathan Greno e Byron Howard (voz); 2011: De force, de Frank Henry; Aïcha (TV); 2012: David et Madame Hansen, de Alexandre Astier; 2013: Ishkq in Paris, de Prem Son; 2014: Sous les jupes des filles, de Audrey Dana;

No teatro: Na Comédie-Française: 1973: L'École des femmes, de Molière, encenação: Jean-Paul Roussillon; L'Avare, de Molière, encenação: Jean-Paul Roussillon; Port-Royal, de Henry de Montherlant, encenação: Jean Meyer; 1974: Ondine, de Jean Giraudoux, encenação: Raymond Rouleau; La Maison de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, encenação: Robert Hossein;  (reposição no Théâtre de l'Odéon);

Fora da Comédie-Française: 1972: La Maison de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, encenação: Robert Hossein, Maison de la Culture de Reims; 1983: Mademoiselle Julie, de August Strindberg, encenação: Jean-Paul Roussillon eis Andréas Voutsinas, Théâtre Édouard VII; 2000: La Dame aux camélias, de Alexandre Dumas e René de Ceccatty, encenação: Alfredo Arias, Théâtre Marigny; 2006: La Dernière Nuit pour Marie Stuart, de Wolfgang Hildesheimer, encenação: Didier Long, Théâtre Marigny; 2014-2015: Kinship, de Carey Perloff, encenação: Dominique Borg, Théâtre de Paris. 

SESSÃO 45: 5 DE DEZEMBRO DE 2016


O PORTEIRO DA NOITE (1973)

“O Porteiro da Noite”, da bastante irregular cineasta italiana Liliana Cavani, é, no mínimo, um projecto provocador, inquietante, resvalando por entre ambientes sórdidos, recordações malsãs, ambiguidades amorosas e equívocas personagens. Este é, todavia, estilisticamente, um dos seus filmes mais conseguidos, não tanto pela cuidada e eficaz “mise-en-scène” que tenta reconstituir, de forma naturalista, um tempo histórico, mas sim pela sua “representação” algo estilizada, jogando mais com a memória de um tempo do que com a recuperação histórica.
Áustria, 1957, assim começa. Num pequeno hotel de Viena, Maximilian Theo Aldorfer (Dirk Bogarde) é o porteiro da noite. Durante a II Guerra Mundial fora oficial da polícia nazi, e tinha como passatempo preferido registar em filme os milhares de presos que chegavam diariamente a campos de concentração, como o de Dachau. Filmava a humilhação, o desespero, a nudez, a fragilidade dos corpos e dos rostos, as lágrimas e a raiva, a angústia e o progressivo desalento, a entrega a um destino de dor. Estas sequências relembram obviamente “Peeping Tom”, de Michael Powell, uma obra de 1960, que analisa o comportamento conturbado de um “serial killer” que filmava os últimos momentos de horror das suas vítimas prestes a morrer. Curiosamente, o argumento partia de uma obra escrita por um criptógrafo que trabalhou durante a II Guerra Mundial, Leo Marks. Não será, pois, por acaso que se podem cruzar influências, elas são visíveis e declaradas.
De entre os milhares de rostos que Max registou, ele isolou o de uma mulher ainda jovem, Lucia Atherton (Charlotte Rampling). Isolou-a na câmara, isolou-a para seu prazer, manipulou-a como quis, serviu-se dela, acorrentou-a, violou-a, protegeu-a, levou-a a festas de nazis, onde Lucia aceitou o papel de nazi, progressivamente apaixonou-se por essa mulher, sua escrava. A guerra acabou, dez anos depois Lucia é mulher de um maestro de orquestra americano, que vem a Viena dirigir “A Flauta Mágica”. O casal instala-se no pequeno “Hotel da Ópera” e Lucia e Max cruzam olhares surpresos quando ela vai buscar a chave do quarto e ele lha entrega. O filme começa aí, no presente, os tempos do campo de concentração são flashbacks que um e outro recordam. As memórias são obviamente de dor, mas igualmente de prazer. Da parte de um e outro. Lucia percebe-se que retirara prazer desse tempo de cativeiro, de tortura, de escravidão. Max também apreciara esses dias de prazer violentamente roubado, de criminosos orgasmos retirados a uma vítima indefesa que, todavia, também gozava com os mesmos. Em 1973 um tal tema era não só escandaloso, como politicamente muito incorrecto.


Numa entrevista concedida aquando da estreia da obra, a cineasta explicou como lhe surgiu a ideia de rodar “O Porteiro da Noite”: enquanto recolhia material para uma película anterior (“La Donna Nella Resistenza”), descobriu dois casos curiosos que aprofundou: o de uma mulher casada que passava todos os anos duas semanas de férias em Dachau, sem saber analisar ao certo o que motivava esse regresso ao campo onde estivera internada; o de uma velha prisioneira de Auschwitz que, quando saiu em liberdade, rompera todos os laços familiares, para assumir uma vida solitária e miserável. A única resposta que dera para esta atitude foi não poder perdoar aos nazis terem-lhe feito descobrir as duas faces da natureza humana. E acrescentara: “Não pense que as vítimas são sempre inocentes”.
Sobre estes dados, Cavani concluía: “Todos temos dentro de nós algum pequeno grão do nazismo. Bem escondido. Se um governo abre as portas a essa parte obscura, se lhe dá direitos de cidadania, se a legaliza, se a monopoliza, se a utiliza... então todos os crimes se tornam possíveis. Cada um assume o seu papel: de carrasco ou de vítima. Porque o regime nazi não é obra de um milhar de loucos ou de monstros. Não é resultado de um golpe de estado. Impôs-se lentamente através de um homem com quem as pessoas se foram pouco a pouco identificando, porque se reconheceram nele. Lucia tem as mesmas razões para regressar ao seu carrasco que a mulher de Dachau para aí voltar. Porque é aí que ela se sente viva. Se reconhece. A sua natureza revelou-se durante a guerra.”
Que o fascismo e o nazismo não se impuseram e sobreviveram sem o silêncio cúmplice ou mesmo a complacência de muitos, eis uma verdade dificilmente controversa. O nazismo não foi só os SS, os generais, o exército, Hitler e os seus ministros. O nazismo vingou sobretudo quando se conseguiu instalar bem no espírito dos alemães, no seu inconsciente colectivo, como um estado de espírito, quer através de uma máquina de propaganda bem montada, quer pelas condições favoráveis que foi encontrar nesse campo de incubação que era a sociedade alemã da época. Se o alemão anónimo não se sentisse bem com o seu sonho imperialista, o nazismo nunca teria sobrevivido. Sobreviveu, pois, com a cumplicidade de muitos, que aceitaram a monstruosidade, ou que aceitaram sofrer o seu papel de vítimas. Que sofreram resignados (ou excitados até) esse papel.


Aqui entramos, no entanto, abertamente na temática proposta por Cavani em “O Porteiro da Noite”, e não se pode dizer que o façamos de ânimo leve. Impõe-se a meditação: se em Dachau houve uma Lucia (ou várias) que se “descobriram” enquanto vítimas predestinadas, nesses dias de terror, milhares de outras vítimas não tiveram sequer a oportunidade de descobrir o que quer que fosse, senão a morte e o fatídico odor das câmaras de gás. Outros ainda, aos milhões, descobriram-se, isso sim, humilhados, ofendidos, violentados e torturados, sem que vislumbrassem prazer onde quer que fosse. Apenas dor. Cavani dirá que sobre esses milhares já se fizeram muitos filmes. É possível, tem razão, mas não todos os necessários, nem os suficientes para que este “O Porteiro da Noite” tenha surgido sem provocar um certo mal-estar nesses idos de 1973.
Houve quem, de uma forma algo simplista, dissesse que “O Porteiro da Noite” era uma história de amor entre um sádico e uma masoquista, tendo Dachau por cenário e recordação. Sadomasoquismo, relação de domínio e humilhação. Reduzir, porém, o nazismo a uma abstracção freudiana pode ser perigoso, esquecendo todas as outras intervenientes de índole económica, política ou social que aqui surgem relegadas para um plano demasiado subalterno.
O filme de Cavani que tem, todavia, qualidades evidentes, sendo difícil permanecer indiferente ao clima de pesadelo que ela consegue transmitir, procura ir um pouco mais longe, e creio que com algumas décadas passadas sobre a sua estreia, poderá ser melhor analisado. O que está em causa é afinal uma história de amor, desviante, que encontrou no ambiente de um campo de concentração o húmus necessário para germinar e que, anos depois, se reproduziu num outro ambiente, é certo, mas sob as mesmas condições “climáticas”. Max e Lucia são apenas um casal onde o desejo e o amor crescem num clima a que hoje se poderá chamar de “bondage”, uma variante do sadomasoquismo, um tipo de fétiche, cuja fonte de prazer deriva de práticas que comportam a dominação, a submissão, a imobilização de parceiros, o consentimento em vários tipos de tortura, física ou psicológica, envolvendo ou não a prática de sexo com penetração.
É obvio que não é só isso que “Il Portiere di Notte” assume como história. Há algo mais, e bem definido. Max é porteiro num hotel onde se refugiam vários nazis que procuram passar despercebidos das autoridades, que tentam recolher testemunhos favoráveis, que procuram fazer desaparecer documentação e ficheiros comprometedores. Há mesmo uma condessa solitária a quem Max serve gigolôs para repastos sexuais, em noites de insónia. Há conspiração, reuniões, ajustes de contas, assassinatos, mas o que torna curioso o filme é que, a determinada altura, o que mais escandaliza naquela sociedade de criminosos foragidos é a existência de um amor, mórbido é certo, mas um amor que, como todos os amores, se torna perigoso e põe em risco a sobrevivência do grupo. Por isso este “amor louco” se torna proscrito, e tem de ser anulado. Neste aspecto, de carrasco e vítima Max e Lucia passam ambos a perseguidos e vítimas de um mundo de pós-guerra, onde se continua a não poder acreditar em ninguém, nem em nada. Num mundo que procura anular a turbulência, alterar apenas alguma coisa para que tudo permaneça incólume, o amor transgressor é uma ameaça.
De resto, a obra cria um clima opressor doentio, com algumas sequências extremamente bem logradas, como é o caso da representação de “A Flauta Mágica”, ou do “travesti” de Lúcia, vestida de SS. Excelente é ainda a representação de Dirk Bogarde, bem acompanhado por Philippe Leroy e Gabriel Ferzetti. Impossível é esquecer a presença inquietante de Charlotte Rampling, no papel que mais a catapultou para a fama e mais vincadamente terá marcado a sua carreira. Entre a inocência e a perversidade, Rampling impõe uma personagem que permanece para sempre na recordação de todos e obviamente nas páginas da História do Cinema Mundial.

O PORTEIRO DA NOITE
Título original: Il Portiere di Notte ou The Night Porter
Realização: Liliana Cavani (Itália, 1974); Argumento: Barbara Alberti, Liliana Cavani, Italo Moscati, Amedeo Pagani, Barbara Alberti, Liliana Cavani; Produção: Ea De Simone, Robert Gordon Edwards; Música: Daniele Paris; Fotografia (cor): Alfio Contini: Montagem: Franco Arcalli; Direcção artística: Nedo Azzini, Jean Marie Simon; Decoração: Osvaldo Desideri; Guarda-roupa: Piero Tosi; Maquilhagem: Iole Cecchini, Iole Cecchini, Cesare Paciotti, Euclide Santoli ; Direcção de produção: Umberto Sambuco; Assistentes de Realização: Franco Cirino, Johann Freisinger, Paola Tallarigo, Mario Garriba; Departamento de arte: Maria-Teresa Barbasso; Som: Fausto Ancillai, Eugenio Rondani, Decio Trani; Companhias de produção: Ital-Noleggio Cinematografico, Lotar Film Productions; Intérpretes: Dirk Bogarde (Maximilian Theo Aldorfer), Charlotte Rampling (Lucia Atherton), Philippe Leroy (Klaus), Gabriele Ferzetti (Hans), Giuseppe Addobbati (Stumm), Isa Miranda (Condessa Stein), Nino Bignamini (Adolph), Marino Masé  Amedeo Amodio, Piero Vida, Geoffrey Copleston, Manfred Freyberger, Ugo Cardea, Hilda Gunther, Nora Ricci, Piero Mazzinghi, Kai-Siegfried Seefeld, Luigi Antonio Guerra, Crlo Mangano, Claudio Steiner, etc. Duração: 118 minutos; Distribuição em Portugal: Monroe Stahr (DVD); Classificação etária (estreia no cinema): M/ 18 anos; DVD: M/ 18 anos; Data de estreia em Portugal: 16 de Setembro de 1976. 


CHARLOTTE RAMPLING (1946 - )
Charlotte Rampling, como actriz, deu corpo a algumas das representações mais secretas, intimistas e perturbantes da figura da mulher, durante a segunda metade do século XX e a primeira década do seguinte. “Dar corpo” é uma boa síntese para o seu trabalho de actriz, pois Charlotte Rampling, para lá da expressividade da voz, da originalidade do seu talento e de uns olhos verdes misteriosos e sensuais, é uma intérprete para quem o corpo é um instrumento de ofício não negligenciável, não por maus motivos, não pelo oportunismo do seu aproveitamento, mas por muito boas razões: Charlotte Rampling faz do seu corpo matéria interpretativa, que acompanha a subtileza da voz e a voluptuosidade da emoção.
Nasceu a 5 de Fevereiro de 1946, em Sturmer, Inglaterra, filha de um coronel que chegou a comandante da NATO e era igualmente artista plástico de certos recursos, além de atleta olímpico, vencedor da medalha de ouro, em Berlim 1936, integrando a estafeta 4x400 metros. Em virtude da vida profissional do pai, Charlotte permaneceu longas temporadas em França, onde estudou na Academia “Jeanne d'Arc pour Jeunes Filles”, em Versalhes. De regresso a Inglaterra, passou pela escola de St. Hilda's, em Bushey. Iniciou a carreira como modelo, antes de se estrear, num papel insignificante, num filme de Richard Lester “The Knack...and How to Get It” (1965). Foi, todavia, no ano seguinte que, ao lado de Lynn Redgrave, se tornou notada como protagonista de “Georgy Girl” (1966), de Sílvio Narizzano, integrando-se de certa forma no movimento de um cinema que se queria retrato da realidade social inglesa e que ficou conhecido por “free cinema”. Em 1969, pela mão de Luchino Visconti, enfrenta o seu primeiro grande desafio, no papel de Elisabeth Thallman, em “Os Malditos” (La Caduta Degli Dei).
A sua carreira ganha fôlego internacional, intercalando trabalhos em Inglaterra, EUA, França e Itália. Em “Vanishing Point”, de Richard Sarafian (1971), é uma inesquecível rapariga que pede boleia na estrada. Assume-se como incestuosa em “Addio, Fratelo Crudelle”, de Guiseppe Patron Griffi, segundo peça teatral de John Ford (1971), e é Ana Bolena, em “Henry VIII and His Six Wives”, de Waris Hussein (1972). Roda, ao lado de Sean Connery, a ficção científica “Zardoz”, de John Boorman (1973), e, em 1974, é Lúcia  Atherton, em “O Porteiro da Noite” (Il Portiere di Notte), de Liliana Cavani, talvez o seu papel mais marcante. Charlotte Rampling torna-se uma actriz inabitual, expondo sem falsos pudores a nudez do seu corpo, mas sempre ao serviço de uma história que o justifica, tornando-se igualmente a actriz certa para papéis de inconfessáveis paixões. Ela era, de certa maneira, a imagem de uma perversão controlada, por vezes fria e dominadora, outras impulsiva e arrebatadora.
Segue-se, em 1975, a “remake” de “Farewell, My Lovely”, contracenando com Robert Mitchum num policial assinado por Dick Richard, partindo de um romance de Raymond Chandler. A nova versão não é tão boa quanto o original, de 1944, assinado por Edward Dmytryk, mas o trabalho dos actores compensa. “La Chair de l'Orchidée”, de Patrice Chéreau, do mesmo ano, oferece-nos outro magnífico retrato de mulher, uma rica herdeira, mantida encerrada pelo marido numa instituição psiquiátrica para assim poder manejar livremente a sua fortuna. É outro grande romance “negro”, desta feita assinado por James Hadley Chase, que ganha no grande ecrã um novo fôlego. Ainda por esta altura, no ponto mais alto da sua carreira de vedeta internacional, roda, sob as ordens do mexicano Arturo Ripstein, “Foxtrot”, contracenando com Max von Sydow e Peter O’Toole, e do norte-americano Woody Allen, “Recordações” (Stardust Memories).
Outro momento importante da sua carreira passa-o sob a direcção de Sidney Lumet, em “The Verdict” (1982), ao lado de Paul Newman, um drama passado entre advogados e barras de tribunais. Depois suporta com brio nova provocação no filme do japonês Nagisa Oshima, “Max, My Love” (1986), onde “aceita” apaixonar-se por um chimpanzé, e em França aparece num “thriller” de mistério e violência, “On Ne Meurt Que Deux Fois”, de Jacques Deary, voltando de novo aos EUA para trabalhar sob a orientação de Alan Parker, em “Angel Heart” (1987), onde se misturam práticas de “voodoo” e ambientes de crime. No final dos anos 80, e durante toda a década de 90, continua no clima do filme policial, por exemplo, em “Paris by Night”, de David Hare (1989) e “Invasion of Privacy”, de Anthony Hickox (1996), e na comédia, casos de “Time is Money”, de Paolo Barzman (1994) ou “Asphalt Tango”, de Nae Caranfil (1997). Mas são os papéis mais conturbados que melhor se encaixam na sua personalidade, como é o caso da inquietante tia Maude, em “The Wings of the Dove”, de Iain Softley, segundo obra de Henry James, onde aparece ao lado de Helena Bonham Carter (1997).
Volta a Anton Tchekov com “The Cherry Orchard”, de Mihalis Kakogiannis (1999), e inicia o novo século com um dos seus melhores trabalhos, “Sous le Sable”, de François Ozon (2000), com quem volta a trabalhar anos depois, em ”Swimming Pool”, num papel que a fará ganhar o prémio de melhor actriz do cinema europeu, atribuído pela European Film Academy, em 2003.
Na última década tem alternado pequenos e grandes papéis onde tem gravado sempre algo da sua personalidade, muito embora a sua carreira tenha oscilado entre obras essenciais e películas de puro entretenimento e vulgar comércio. Destaquem-se “The Statement”, de Norman Jewison (2003), “Immortel Ad Vitam”, de Enki Bilal (2004), “Le Chiavi di Casa”, de Gianni Amelio (2004), “Lemming”, de Dominik Moll (2005) “Vers le Sud”, de Laurent Cantet (2005), “Basic Instinct 2”, de Michael Caton-Jones (2006), “Angel”, de François Ozon (2007), ou, mais recentemente, “Desaccord Parfait”, de Antoine de Caunes, “Caotica Ana”, de Julio Medem, “Babylon A.D.”, de Mathieu Kassovitz, “The Duchess”, de Saul Dibb (todos de 2008).
Encontra-se actualmente a rodar, ou a ultimar, vários projectos, entre os quais “The Eye of the Storm”, de Fred Schepisi, “Melancholia”, de Lars von Trier. Outros títulos onde está prevista a sua colaboração: “Kill Drug”, “Angel Makers”, “Cleanskin”, “Never Let Me Go”, “Rio Sex Comedy” ou “The Mill and the Cross”. Uma actividade transbordante. Apesar desta carreira ininterrupta no cinema, Charlotte Rampling ainda encontra tempo para outras aparições, nomeadamente no teatro e na canção, um velho sonho que lhe vem da adolescência, quando ela e a irmã Sarah cantavam em dueto em cabarets, até ao dia em que o velho coronel, seu pai, as proibiu de actuarem. Mas, muitas décadas depois, em 2002, Charlotte cumpre o sonho e lança um CD, "Comme Une Femme", com Michel Rivgauche e Jean-Pierre Stora, disco que teve grande sucesso.
No teatro estreia-se tarde, só em Setembro de 2003, com “Petits Crimes Conjugaux”, de Eric-Emmanuel Schmitt, no “Theatre Eduoard VII”, em Paris. Ao lado de Bernard Giraudeau, numa encenação de Bernard Murat. Em 26 de Maio de 2004, no mesmo teatro, lê "A Queda da Casa Usher” e “A Máscara da Morte Vermelha”, duas novelas de Edgar Allan Poe. E “Notes de Lecture”, acompanhada pela “Musique Obliqúe”, com música de Jean-Sébastien Bach e André Caplet.
Ainda nesse ano, aparece entre Junho e Setembro, no “National Theatre”, em Londres, integrando o elenco de “The False Servant” de Pierre Marivaux, numa nova versão de Martin Crimp, com encenação de Jonathan Kent. Interpreta ainda, em 2007, em França, uma encenação de “A Dança da Morte”, de August Strindberg, no “Theatre Madelaine”, em Paris, ao lado de Bernard Verley. No Festival de Teatro de Almada, 2010, Charlotte Rampling apresenta "Yourcenar/Cavafy" um recital de textos e poemas, respectivamente de Marguerite Yourcenar e Konstantin Kavafy.


Filmografia

Como actriz / Cinema: 1964: The Knack … and How to Get It (Lições de Sedução), de Richard Lester; 1965: Rotten to the Core, de John Boulting; 1966: Georgy Girl, de Silvio Narizzano; Strangers, da série de TV "Five More", de John Irvin (TV); 1967: The Long Duel (Duelo sem Tréguas), de Ken Annakin; The Superlative Seven, série de TV "The Avengers", de Sidney Hayers; The Mystery of Cader Ifan, da série de TV "Sir Arthur Conan Doyle", de Peter Sasdy; The Fantasist, da série de TV "Theatre 625", de Peter Hammond; 1968: Sequestro di Persona, de Gianfranco Mingozzi; 1969: La Caduta degli dei (Os Malditos), de Luchino Visconti; Target: Harry ou What's in It for Harry?, de Roger Corman; Three, de James Salter; 1971: Vanishing Point (Corrida Contra o Destino), de Richard C. Sarafian; The Ski Bum, de Bruce D. Clark; Henry VIII and His Six Wives, de Waris Hussein; Addio fratello crudele (Adeus, Irmão Cruel), de Giuseppe Patroni Griffi; 1972: Asylum, ou House of Crazies (Lua Vermelha), de Roy Ward Baker; Corky, de Leonard Horn; Zinotchka, de Christopher Miles (TV); 1973: Giordano Bruno (Giordano Bruno), de Giuliano Montaldo; 1974: Caravan to Vaccares (Caravana para a Aventura), de Geoffrey Reeve; Zardoz (Zardoz), de John Boorman; Il Portiere di notte (O Porteiro da Noite), de Liliana Cavani; 1975: Yuppi du (Yuppi Du), de Adriano Celentano; Foxtrot (Foxtrot), de Arturo Ripstein; Farewell, My Lovely (O Último dos Duros), de Dick Richards; La Chair de l'orchidée (A Rapariga da Orquídea), de Patrice Chéreau; 1976: Sherlock Holmes in New York (Sherlock Holmes em Nova Iorque), de Boris Sagal (TV); 1977: Un Taxi Mauve ou A Purple Taxi (Um Táxi Cor de Malva), de Yves Boisset; Orca – The Killer Whale (Orca, a Fúria dos Mares), de Michael Anderson; 1980: Stardust Memories (Recordações), de Woody Allen; 1982: The Verdict (O Veredicto), de Sidney Lumet; 1983: BBC Play of the Month (TV); 1984: Viva la vie, de Claude Lelouch; 1985: On Ne Meurt Que Deux Fois (Só se Morre Duas Vezes), de Jacques Deray; 1986: Max mon amour (Max, Meu Amor), de Nagisa Ōshima; 1987: Mascara (Máscara), de Patrick Conrad; Angel Heart (Angel Heart - Nas Portas do Inferno), de Alan Parker; 1988: Paris by Night (Uma Chamada a Meio da Noite), de David Hare; 1990: Rebus, de Massimo Guglielmi; D.O.A. (Morto à Chegada), de Rocky Morto; 1992: La femme abandonnée, de Edouard Molinaro; Hammers over the anvil, de Ann Turner; 1993: Asphalt Tango, de Nae Caranfil; 1994: Murder in mind, de Robert Bierman; Time Is Money de Paolo Barzman; 1995: Radetzkymarsch, de Axel Corti, Gernot Roll; 1996: Invasion of Privacy), de Anthony Hickox; 1997: The Wings of the Dove (As Asas do Amor), de Iain Softley; 1999: The Cherry Orchard, de Michael Cacoyannis; Signs & Wonders, de Jonathan Nossiter; 1999: Great Expectations (Grandes Esperanças), de Julian Jarrold (TV); 2000: Superstition, de Kenneth Hope; Aberdeen, de Hans Petter Moland; Sous le sable (Sob a Areia), de François Ozon; 2001: The fourth angel (O Quarto Anjo), de John Irvin; 2001: Spy Game (Jogo de Espiões), de Tony Scott; 2002: Embrassez qui vous voudrez (Amor Sem Tréguas), de Michel Blanc; 2003: I’ll sleep when I’m dead (Só a Morte me Pode Parar), de Mike Hodges; Imperium: Augustus, de Roger Young; Swimming Pool (Swimming Pool), de François Ozon; The Statement (A Declaração), de Norman Jewison; 2004: Le Chiavi di Casa (As Chaves de Casa), de Gianni Amelio; Immortal – New York 2095, de Enki Bilal; 2005: Vers le Sud (Para o Sul), de Laurent Cantet; Lemming, de Dominik Moll; 2006: Désaccord parfait (Desacordo Perfeito), de Antoine de Caunes; 2006: Basic Instinct 2 (Instinto Básico, 2), de Michael Caton-Jones; 2007: Angel (Angel - Encanto e Sedução), de François Ozon; Caótica Ana (Caótica Ana), de Julio Médem; 2008: Deception (No Limite da Ilusão), de Marcel Langenegger; Sonnet, de Boris Zabotov; Babylon A.D. (Babylon A.D), de Mathieu Kassovitz; The Duchess (A Duquesa), de Saul Dibb; 2009: Le bal des actrices, de Maïwenn Le Besco; Quelque chose à te dire, de Cecile Telerman; Boogie Woogie, de Duncan Ward; La femme invisible (d'après une histoire vraie), de Agathe Teyssier; Life During Wartime (A Vida em Tempo de Guerra), de Todd Solondz; 2010: StreetDance 3D, de Max Giwa, Dania Pasquini; Never Let Me Go (Nunca Me Deixes), de Mark Romanek; Le grand restaurante, de Gérard Pullicino (TV); Rio Sex Comedy, de Jonathan Nossiter; Collection Fred Vargas (TV); 2011: Melancholia (Melancolia), de Lars von Trier; Młyn i krzyż (O Moinho e a Cruz), de Lech Majewski; 2012: I, Anna, de Barnaby Southcombe; The Eye of the Storm (O Coração da Tempestade), de Fred Schepisi; Cleanskin, de Hadi Hajaig; Ghost Recon: Alpha , de François Alaux, Hervé de Crécy; Restless, de Edward Hall; Tutto parla di te, de Alina Marazzi; 2013: Night Train to Lisbon (O Comboio Nocturno pra Lisboa), de Bille August; Jeune et Jolie (Jovem e Bela), de François Ozon; Dexter (TV); The Sea, de Stephen Brown; 2014; Le dos rouge, de Antoine Barraud; The Forbidden Room, de Guy Maddin, Evan Johnson; 2015: 45 Years, de Andrew Haigh; Broadchurch, de Chris Chibnall (TV); London Spy (TV); Händel, de Franco Battiato; The Whale, de Andrea Pallaoro; Seances, de Guy Maddin.