MÚSICA NO CORAÇÃO (1965)
(na
celebração dos 50 anos da sua estreia mundial, a 2 de Março de 1965)
Há alguns
filmes sobre os quais tenho uma recordação ambígua. Este é um deles. Ao longo
da vida fui gostando e desgostando. Gostando de Robert Wise (sempre!), gostando
e desgostando de tudo o resto, porque a vida é feita de bons e maus humores.
Quando somos mais novos, mais radicais, menos dados à sensatez, “The Sound of
Music” pode ser pasto de toda a nossa verrinosa maledicência. Que dizer desta empastelada
aventura sentimental da família Trapp? Pois nada melhor do que arrear-lhe em
cima. Mesmo um cliente habitual e um fanático do melodrama e do “musical” (no
teatro ou no cinema) como eu, nunca viu com muito bons olhos esta lamechice da
freira cantante que se apaixona pelo barão viúvo com sete filhos e foge dos
nazis a cantar num festival de Salzburgo. Mas a verdade é que vi várias vezes o
filme, ou excertos do filme (sobretudo nas vésperas de Natal, num qualquer
canal de TV). É que “Música no Coração” tem muito que se lhe diga, tanto a peça
como, sobretudo, o filme.
“The Trapp
Family Singers” foi a biografia escrita por Maria Augusta Trapp, publicada em
1947, quando a família já tinha terminado a sua carreira como cantores,
contando as mirabolantes peripécias de uma preceptora de criancinhas que
interrompe o seu estágio para freira para descobrir a verdadeira “vida” na casa
dos Trapp, com todo o seu caudal de promessas de felicidade e ameaças de
tragédia. Com base nesta autobiografia, surgiu na RFA, em 1956, um filme, “Die
Trapp-Familie” (ou “The Trapp Family”), assinado por Lee Kresel e Wolfgang
Liebeneiner, com argumento de George Hurdalek e Herbert Reinecker, que parece
estar na origem do interesse dos produtores norte-americanos. Entre os intérpretes,
contava-se a memorável Ruth Leuwerik (no papel de Maria), ao lado de Hans Holt
(Barão von Trapp), Maria Holst, Josef Meinrad, Friedrich Domin, Hilde von
Stolz, Agnes Windeck, Gretl Theimer, etc. Na estreia, a baronesa Von Trapp,
sobrevivente ainda da gesta coral da família, teve uma deixa memorável: “Nada é
verdadeiro, mas é tudo maravilhoso!” A música era de Franz Grothe, e a premissa
do filme enquadrava-se bem no espírito da reconstrução alemão, “para todos os
problemas, há uma solução”.
O realizador Wolfgang
Liebeneiner era um homem experimentado neste tipo de obras, e teve um sucesso
inequívoco. Há no argumento desta obra um final que deixa supor que a família
Trapp fugiu da Alemanha nazi directamente para os EUA, o que não aconteceu na
realidade, pois ficaram na Europa e só em 1939 iniciaram a tournée pelos
Estados Unidos. Essa estadia daria origem a uma continuação, “Die Trapp-Familie
in Amerika” (“The Trapp Family in America”) (1958), desta feita dirigida
unicamente por Wolfgang Liebeneiner. Ruth Leuwerik regressaria no papel da
Baronesa von Trapp, e Hans Holt, no de Barão von Trapp.
Foram estes
filmes, e a biografia escrita, que inspiraram Oscar Hammerstein II a escrever
as líricas e Richard Rodgers a compor a música para um guião de Howard Lindsay
e Russell Crouse, que subiu a cena no Lunt-Fontanne Theatre (Nova Iorque), em
16 de Novembro de 1959, para iniciar uma carreira épica na história do musical
norte-americano. Mary Martin e Theodore Bikel eram os protagonistas inspirados
que “conquistaram os corações” de todos os espectadores na noite da estreia,
com excepções de alguns críticos que colocaram ressalvas a este espectáculo.
Mas, neste caso, os críticos escreveram e a caravana passou incólume. O sucesso
estava na rua. Nada o detinha.
“Música no
Coração” transformou-se daí em diante, seguramente, num dos mais célebres e
rentáveis espectáculos de toda a história do teatro e do cinema musicais. O seu
êxito triunfal em (quase) todas as temporadas teatrais e o seu apoteótico
sucesso nas salas de cinema, aquando da estreia do filme assinado por Robert
Wise, que esteve em Lisboa (quem não recorda?), quase dois anos consecutivos no
Tivoli, com sessões esgotadas e espectadores que repetiam a sua visão vezes sem
conta, não termina de surpreender tudo e todos. Ninguém se furtou, depois, por
exemplo, ao fascínio de um novo lançamento em DVD (com dezenas e dezenas de
extras, a explicar como foi o que foi), e ninguém pode negar a genialidade de
Robert Wise a conduzir este filme, muito embora alguns possam não suportar o
tom algo lamechas e o peso de um argumento que, não sendo convencional, acaba
por não se furtar a todos os rodriguinhos do melodrama musical.
Acontece que
gosto de melodramas (ah, o Douglas Sirk!) e adoro musicais. Logo, por que não
gostar deste “dois em um” que, para mais, tem uma soberba partitura musical?
Revisto agora o filme, o que sobressai é realmente a portentosa realização de
um mestre, Robert Wise. A sua relação com os cenários, a forma como enquadra,
como movimenta a câmara, como dirige os actores, como se serve da sumptuosa
paisagem, como estabelece a relação entre as personagens no interior de um
mesmo plano (como realiza a “mise-en-scène”, em suma) é realmente brilhante.
Depois, a história por vezes arrasta-se nalguns convencionalismos escusados.
Mas a verdade é que o filme sobrevive, e sobrevive bem. 50 anos depois, as
manifestações mundiais a assinalar a efeméride dão conta desta sobrevivência.
Fui remexer
em papéis antigos e descobri uma nota minha, no DN, sobre uma reposição do filme,
em Julho de 1977. Não se esqueçam da data e atentem no que escrevi: “Falando do
filme, o melhor será passar por cima das aventuras e desventuras da família
Trapp (que todos conhecem), para reconhecer a maestria extrema deste produto de
uma cinematografia virada essencialmente para o “divertimento para toda a
família.” Veiculando uma filosofia da vida de base “pequeno-burguesa”, jogando
com os sentimentos e as emoções a seu belo prazer, “The Sound of Music” é, por
outro lado, uma verdadeira lição de técnica e de “métier”. Por alguma razão Mao
Tse Tung, quando quis que os chineses aprendessem cinema, lhes comprou, entre
outras cópias (poucas), uma deste “manual”.
Ora bem: com
uma ou outra alteração terminológica, mantenho o que então disse, acrescentando
que, trinta anos depois, os chineses demonstraram ter aprendido, e muito bem, a
fazer cinema. Robert Wise foi um dos grandes cineastas de Hollywood, um homem
que começou a carreira ao lado de Orson Welles (colaborador essencial em
“Citizen Kane”) e construiu depois uma filmografia invejável. Sou um seu fã
incondicional. Há uns anos, num festival de cinema em Óbidos, ele foi o
presidente de um Júri de que eu também fazia parte. Infelizmente adoeci e não
pude estar presente nos trabalhos do festival, mas fui a Óbidos conhecê-lo, com
o termómetro nos 38, só para ter o prazer de o olhar nos olhos. Afinal ele
assinou uma dezena de obras-primas, desde “O Túmulo Vazio” (1945), até “West
Side Story” (1961), passando por “Nascido para Matar”, “Nobreza de Campeão”, “O
Dia em que a Terra Parou”, “Marcado pelo Ódio”, “Quero Viver”, “Homens no
Escuro”, não contando com os ameaços.
Uma
informação final: outro filme surgiu na continuação de “Música no Coração”. Foi
“Celebrate the Sound of Music”, de 2005, uma realização de John L. Spencer,
para televisão, e, tal como o próprio título sugere, trata-se de uma homenagem
ao filme, com participação de cantores e personalidades que evocam a obra.
Graham Norton era o apresentador, e apareciam vozes de Big Brovaz, Clare
Buckfield, Fearne Cotton, Rosemarie Ford, Lesley Garrett, Carrie Grant, Jill
Halfpenny, Gloria Hunniford, Bonnie Langford, Jon Lee, Robert Lindsay, Richard
McCourt, Linda Robson, Denise Van Outen, entre outras.
Entretanto,
surgiu a versão teatral portuguesa de “Música no Coração”, com a assinatura de
Filipe La Féria, e com um elenco prestigiado, à frente do qual Lúcia Moniz e
Anabela alternam no papel de “A Noviça Rebelde” (título do filme no Brasil).
Com a partitura de Oscar Hammerstein II e Richard Rodgers, que contém só “hits”
inesquecíveis, o seu bom gosto, o seu sentido do espectáculo, o seu ritmo e a
sua direcção de actores desta minha embaraçosa ambiguidade ressaltaram as
virtudes e atenuarem-se os lamentos. Esta montagem portuguesa de “Música no
Coração” foi verdadeiramente surpreendente e um enorme passo em frente na
história do musical em Portugal, mas mais ainda, na história do teatro em
Portugal.
MÚSICA NO CORAÇÃO
Título original: The Sound of Music
Realização: Robert Wise
(EUA, 1965); Argumento: Ernest Lehman, segundo Howard Lindsay e Russel Crouse
(argumento do musical teatral), a partir de Maria von Trapp ("The Story of
the Trapp Family Singers"); Produção: Saul Chaplin, Robert Wise, Peter
Levathes; Richard D. Zanuck; Música original: Irwin Kostal; Fotografia (cor):
Ted D. McCord; Montagem: William Reynolds; Casting: Lee Wallace; Design de
produção: Boris Leven; Decoração: Ruby R. Levitt, Walter M. Scott;
Guarda-roupa: Dorothy Jeakins; Maquilhagem: Margaret Donovan, Ben Nye, Willard
Buell, Ray Forman; Direcção de produção: Saul Wurtzel; Assistentes de
realização: Ridgeway Callow, Richard Lang, Maurice Zuberano; Departamento de
arte: Glenn 'Skippy' Delfino, Leon Harris, Ed Jones; Som: James Corcoran,
Bernard Freericks, Fred Hynes, Murray Spivack; Efeitos especiais: L.B. Abbott,
Emil Kosa Jr.; Companhias de produção: Robert Wise Productions (A Robert Wise
Production of Rodger and Hammerstein's), Argyle Enterprises; Intérpretes: Julie Andrews (Maria),
Christopher Plummer (Capitão Von Trapp), Eleanor Parker (a baronesa), Richard
Haydn (Max Detweiler), Peggy Wood (Madre superior), Charmian Carr (Liesl),
Heather Menzies-Urich (Louisa), Nicholas Hammond (Friedrich), Duane Chase
(Kurt), Angela Cartwright (Brigitta), Debbie Turner (Marta), Kym Karath
(Gretl), Anna Lee, Portia Nelson, Ben Wright, Daniel Truhitte, Norma Varden,
Gilchrist Stuart, Marni Nixon, Evadne Baker, Doris Lloyd, Gertrude Astor, Alan
Callow, Sam Harris, Jeffrey Sayre, etc. Duração:
174 minutos; Classificação etária: M/ 6 anos; Distribuição em Portugal (DVD e
BluRay): Twentieth Century Fox / Pris Audiovisuais; Data de estreia em
Portugal: 10 de Janeiro de 1966.
JULIE ANDREWS (1935
- )
Julia Elizabeth Wells nasceu a 1 de Outubro de
1935, em Walton-on-Thames, Surrey, em Inglaterra. O pai, Edward Charles
"Ted" Wells, era professor de trabalhos manuais, e a mãe, Barbara
Ward Wells, pianista. Com dois anos de idade, começou a estudar dança com uma
tia, Joan. Aos quatro anos, os pais divorciaram-se, ela ficou com a mãe e o
padrasto, Ted Andrews, um cantor e artista de vaudeville, a quem foi buscar o
seu novo nome. Ted Andrews descobriu que ela possuía uma bela voz que,
devidamente trabalhada, iria torná-la famosa em toda Inglaterra. Teve então
aulas de canto com Madame Lilian Stiles-Allen. Muito jovem ainda, estreou-se
nos teatros do West End, em Londres, na década de 40, viajando depois para os
EUA, lançando-se na Broadway em 1954 com o musical "The Boyfriend".
Depois de passar pela televisão e de se estrear no cinema, Julie Andrews tornou-se
a única actriz a ter vencido um Oscar num filme de Walt Disney, no musical
“Mary Poppins” (1964), que lhe abriu as portas do sucesso. Mas, no ano
seguinte, “Musica n Coração”, um dos maiores êxitos de bilheteira de todos os
tempos, catapulta-a para a glória. Rende-lhe várias nomeações para Oscars,
Globos e outros prémios, e cimenta a sua reputação como actriz, cantora,
bailarina, diretora teatral e escritora.
Casada com Tony Walton (1959-1967) e,
posteriormente, com o realizador Blake Edwards (1969-2010), com quem trabalhou
imenso, em vários filmes: “Darling Lili”, “The Tamarind Seed”, “The Pink
Panther Strikes Again”, “Ten”, “S.O.B.”, “Victor Victoria”, “Trail of the Pink
Panther”, “The Man who Loved Women” ou
“That's Life!”. Mas Julie Andrews participou ainda noutros
filmes particularmente interessantes: “The Americanization of Emily",
"Hawaii", "Torn Curtain", “Thoroughly Modern Millie"
ou "Star!".
Sobre “Mary Poppins” e “My Fair Lady” há uma
história curiosa a relembrar. Quem interpretou “My Fair Lady” no teatro foi
Julie Andrews. Quando a Warner projectou a adaptação a cinema, escolheu Audrey
Hepburn para protagonista. Esta, inicialmente, recusou, dizendo que teria de
ser Julie Andrews a repetir no cinema o seu trabalho no teatro. Mas Jack Warner
não aceitou a sugestão e contra-atacou: ou Audrey Hepburn aceitava, ou seria
Elizabeth Taylor a ficar com o papel. Na sessão de entrega dos Oscars, estavam
as duas nomeadas, e seria Julie a receber a estatueta. Ganharia também o Globo
de Ouro para Melhor Actriz em filme musical, e, ao receber este prémio, Julie
Andrews “vingou-se” com muito estilo. Agradeceu a Jack Warner, “pois graças a
ele ter-lhe recusado o papel principal em “My Fair Lady”, ela pode aceitar
interpretar “Mary Poppins”, e assim receber aquele prémio”.
Julie Andrews foi homenageada pela Rainha Elizabeth
II com a Ordem do Império Britânico em 31 de dezembro de 1999, além de também
ter sido eleita, em 2002, uma das 100 maiores personalidades britânicas de
todos os tempos, ocupando a 59ª posição. Além de um Oscar para melhor actriz,
conquistou cinco Globos de Ouro, três Grammys e dois Emmys, entre muitos outros
prémios.
Em 1997, após uma cirurgia à garganta, viu
afectadas as suas cordas vocais, o que a deixou profundamente deprimida, e a
fez recorrer a um acompanhamento psicológico. Interrompeu a carreira, mas
voltaria depois, sobretudo ao teatro. No cinema passou sobretudo a emprestar a
sua voz a personagens de filmes de animação. Andrews também escreve livros
infantis, e em 2008 publicou uma autobiografia intitulada "Home: A Memoir
of My Early Years".
Pela sua contribuição à indústria cinematográfica,
Andrews possui uma estrela no Wall of Fame, em Hollywood Boulevard, junto ao nº
6901. Na cerimónia dos Osacres de 2015 recebeu um tributo que lhe foi entregue
por Lady Gaga que interpretou um conjunto de temas de “The Sound of Music”.
Filmografia
Como actriz: 1949: La rosa di Bagdad,
de Anton Gino Domenighini (voz); 1953: Television Christmas Party (TV); 1956: Ford
Star Jubilee (TV); 1957: Cinderella (TV); 1959: The Gentle Flame (TV); 1964:
The Americanization of Emily (Herói Precisa-se), de Arthur Hiller; Mary Poppins
(Mary Poppins), de Robert Stevenson; 1965: The Sound of Music (Música no
Coração), de Robert Wise; 1966: Hawaii (Hawaii), de George Roy Hill; 1966: Torn
Curtain (Cortina Rasgada), de Alfred Hitchcock; 1967: Thoroughly Modern Millie
(Millie, Rapariga Moderna), de George Roy Hill; 1968: Star! (A Estrela!), de Robert Wise; 1970: Darling
Lili (Querida Lili), de Blake Edwards; 1974: The Tamarind Seed (A Semente de
Tamarindo), de Blake Edwards; 1976 A Pantera volta a atacar (The Pink Panther
Strikes Again), de Blake Edwards (voz, não creditada); 1979: Ten (10 - Uma
Mulher de Sonho) de Blake Edwards; 1980: Little Miss Marker (Jogar para
Ganhar), de Walter Bernstein; 1981: S.O.B. (Tudo Boa Gente), de Blake Edwards;
1982: Victor Victoria (Victor/Victoria), de Blake Edwards; Trail of the Pink
Panther (Na Pista da Pantera), de Blake Edwards (voz, não creditada); 1983: The
Man who Loved Women (Os meus Problemas com as Mulheres), de Blake Edwards;
1986: Duet for One (Dueto só para um), de Andreï Kontchalovski; 1986: That's
Life! (A Vida É Assim), de Blake Edwards; 1991: Our Sons (Os Filhos da Sida),
de de John Erman (TV); 1992: Julie (TV); Cin cin ou A Fine Romance, de Gene
Saks; 1995: Victor/Victoria (TV); One Special Night (TV); 2000: Relative
Values, de Eric Styles; 2001: The Princess Diaries (O Diário da Princesa), de
Garry Marshall; On Golden Pond (TV); 2002: Paraíso Filmes (TV); 2003:
Unconditional Love (Quem Matou o Nosso Amante?) de P. J. Hogan; Eloise at
Christmastime (TV); Eloise at the Plaza (TV); 2004: Shrek 2 (Shrek 2), de
Andrew Adamson (voz); The Princess Diaries 2: Royal Engagement (O Diário da Princesa:
Noivado Real) de Garry Marshall; The Cat That Looked at a King (Vídeo); Great
Performances (TV) Cinderella; 2007: Shrek 3 (Shrek o Terceiro), de Chris Miller
(voz); Enchanted (Uma História de Encantar) de Kevin Lima (narradora); 2010:
Shrek Forever After (Shrek Para Sempre) de Mike Mitchell (voz); Despicable Me
(Gru - O Maldisposto) de Chris Renaud e Pierre Coffin (voz); Tooth Fairy (A
Fada dos Dentes) de Michael Lembeck;
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