SESSÃO ESPECIAL DE NATAL
Dia 25 de Dezembro 17 horas
MARY
POPPINS (1964)
“Mary Poppins” é um
filme que se integra perfeitamente nas categorias do maravilhoso e da fantasia.
Na verdade, Mary Poppins é uma fada e o filme um conto de fadas, onde uma delas
desce à Terra, não a cavalo numa vassoura, como é tradicional das bruxas, mas a
reboque de um guarda-chuva e trazendo na mão uma maleta mágica de onde, sempre
que necessário, saem os mais desencontrados objetos.
AO
ENCONTRO DE MR. BANKS
A rodagem deste filme
parece ter estado envolta num oceano de problemas, o que, curiosamente, foi
recentemente contado (versão dos estúdios produtores, obviamente) num filme de
John Lee Hancock (2013), “Ao Encontro de Mr. Banks” (Saving Mr. Banks). O filme
estreou em Janeiro de 2014 em Portugal e, nessa altura, escrevi sobre o mesmo
um texto que talvez ajude a recordar os conflitos surgidos durante os vinte
anos que mediaram entre o interesse inicial de Walt Disney em adaptar as obras
de Pamela Lyndon Travers, escritora que
criou “Mary Poppins”, e a data da estreia do filme: “P.L. Travers assinava
assim o seu trabalho literário para encobrir o facto de ser mulher. Na verdade,
fora baptizada com o nome de Helen Lyndon Goff e nascera na Austrália, em
Maryborough, Queensland, a 9 de Agosto de 1899, vindo a morrer em Londres, a 23
de Abril de 1996. Quando tinha sete anos, o pai faleceu, um acontecimento que
para sempre marcaria a jovem. Desde muito nova que se dedicou à poesia,
tornando-se escritora, jornalista e passando mesmo pelo teatro, como actriz.
Andou pela Austrália e pela Nova Zelândia, em tournée, depois viajou até à
Irlanda, onde conheceu vários poetas e escritores, passando a Londres, onde se
instala. Publica, em 1934, “Mary Poppins”, que rapidamente se tornou um sucesso
retumbante.
Em Hollywood, as filhas de Walt Disney leem o livro e adoram. O pai
promete-lhes que o vai adaptar ao cinema. Entra em contacto com a escritora,
que nem quer ouvir falar em adaptações, detesta musicais e tem horror a
“bonecos animados”. Durante vinte anos, trocam cartas e nem um nem outro
desiste dos seus intentos. “Saving Mr. Banks” é, pois, a história de dois
teimosos que se enfrentam para cumprir promessas. Ele quer adaptar a cinema o
livro para cumprir o que jurara às filhas, ela não quer ceder para se manter
fiel à promessa que fizera a si própria.
A determinada altura da vida de P.L. Travers, as receitas literárias
começam a diminuir e o seu agente convence-a a viajar até Los Angeles. Isso
acontece em 1961. Como se calcula, a escritora começa por detestar a cidade e o
encontro com Walt Disney é desastroso. A autora de “Mary Poppins” revela-se uma
velhota ácida, fria, distante, agressiva, nada cooperante, mostra que está a
fazer um frete insuportável. As reuniões com argumentistas, compositor,
letristas, produtores, secretárias and so on, são lendárias. A má disposição e
o negativismo de P.L. Travers julgar-se-iam inultrapassáveis. Se o tivessem
sido, não haveria agora este filme, nem “Mary Poppins” com pinguins em desenho
animado, a dançarem em redor de Dick Van Dyke. Mas, lentamente, vai cedendo aos
encantos do lugar e das personagens e talvez também ao cansaço. O filme faz-se,
estreia-se em 1964, é um triunfo, mas ela mantém as reservas e não permite a
Walt Disney aproveitar nenhuma das quatro sequelas que, entretanto, escrevera e
editara com a sua Mary Poppins como protagonista. Fim de história, que não
contém nenhum suspense especial, pois é do conhecimento geral. Faz parte da História.
Este é mais um filme que ficciona factos reais.
John Lee Hancock, o realizador, é igualmente um argumentista de algum
sucesso, tendo assinado, enquanto tal, algumas obras muito interessantes, como
“Um Mundo Perfeito” e “Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal”, ambas rodadas por
Clint Eastwood, tendo dirigido como realizador “The Rookie - O Treinador”,
“Álamo” e “Um Sonho Possível”, antes de se entregar a este “Ao Encontro de Mr.
Banks”. Nada de particularmente excitante, o mesmo acontecendo agora, ainda que
neste último caso, a história tenha a sua graça, e os intérpretes sejam
excelentes. Emma Thompson compõe um retrato inspirado desta insuportavelmente
irritante P.L. Travers; Tom Hanks é um Walt Disney impecável, talvez demasiado
“politicamente correcto” (mas que dizer, se a produção é dos seus estúdios e
herdeiros?); Annie Rose Buckley é uma miudinha adorável, que as asperezas da
vida transformaram na agreste escritora; Colin Farrell é o pai destemperado que
morre cedo e deixa um rasto de tristeza na filha; Ruth Wilson é a sacrificada
mãe; Paul Giamatti é admirável como motorista particular de Travers, e por aí
fora. Só pelas interpretações merece a pena as duas horas de visionamento. Mas
a produção é cuidada, os aspectos técnicos estão à altura da casa produtora e o
resultado final é mais um daqueles filmes para “toda a família” a que estes
estúdios nos habituaram há longas décadas.
Para quem gosta de cinema e de espreitar os bastidores das produções de
Hollywood, este é mais um aspecto a ter em conta. O que coloca algumas
objecções ao produto será, por um lado, o ar muito bem-comportado de toda a
gente, o que nos permite supor que os argumentistas (Kelly Marcel e Sue Smith)
adocicaram muito a realidade e, por outro, uma estrutura narrativa, tipo sanduíche,
com duas histórias entremeadas a decorrer em simultâneo, por um lado a
juventude de P.L. Travers na Austrália, por outro lado o encontro desta com
Disney em Hollywood. Obviamente que se percebe o porquê da opção: a história da
juventude de P.L. Travers é a base para a compreensão do seu comportamento ao
longo da vida. Mas o esquema acaba por ser um pouco enfadonho, por
repetitivo. Globalmente, é um espectáculo que se vê com agrado, mas não
muito mais do que isso. O que já não é pouco se lhe acrescentarmos o
brilhantismo das representações.
MARY
POPPINS
Resolvidos a bem ou a
mal os problemas resultantes da adaptação, aí temos o filme. Walt Disney, ao
contrário do que muita gente julga, só foi realizador dos filmes que surgiram
com a sua chancela entre 1921 e 1935, sendo que dirigiu sobretudo
curtas-metragens, aqueles “desenhos animados” que antecediam o filme principal,
durante várias décadas nas sessões normais de cinema (antes da chegada das
sessões contínuas que só deixam lugar ao filme principal e aos trailers das
futuras estreias). À medida que a sua marca ganhou prestígio e sucesso
comercial, Disney passou a ser sobretudo o produtor, mas um produtor com poder
absoluto sobre os produtos saídos da sua fábrica. Foi na condição de produtor
que ergueu o projecto “Mary Poppins”, estreado um ano depois da longa-metragem
de animação “A Espada Era a Lei” (The Sword in the Stone). Os estúdios
encontravam-se num dos seus períodos de ouro e Walt Disney entregou a
realização deste filme em imagem real, mas com algumas sequências que misturam
figuras humanas e desenho animado, a Robert Stevenson, um homem da casa, muito
habituado aos chamados filmes para toda a família. Na Broadway, descobriu uma
jovem que nunca tinha feito cinema e se encontrava nos palcos de Nova Iorque a
interpretar “Camelot”. Antes tinha pensado em Bette Davis ou Angela Lansbury.
Estava encontrada a fada que nos daria, em anos sucessivos, esta “Mary Poppins”
e “Música no Coração”. Uma fada Midas com mãos de ouro que transformava em
desmedido lucro tudo em que cantava.
“Mary Poppins”
ambienta-se em Londres, 1910, centrando-se sobre uma família de classe
média-alta, o pai banqueiro, a mãe sufragista, e os dois filhos deixados ao
Deus dará pelos superiores interesses dos pais. As governantas não duravam uma
semana nas mãos dessas crianças rebeles até ao dia em que entra uma nova ama
pela porta dentro, com chapéu de chuva na mão e mala. E tudo se modifica como
por magia, porque afinal de magia se trata. A ama-fada transforma rapidamente
os insubordinados miúdos em ternurentos adolescentes, os pais interiorizam a
suas falhas, não sem antes passarem por alguns apertos que mostraram bem como
se comportam os banqueiros quando deixados a solo. Mas num filme “para toda a
família” tudo tem de terminar bem, o que acaba por acontecer com a sua lição de
moral bem estudada e aplicada a preceito, para o capital e para a rebeldia,
para o pai banqueiro e para a mãe sufragista.
A história é
importante, claro, mas o que parece sobretudo ficar depois da saída da sala escura
(hoje em dia é mais depois de desligar o aparelho de tv), é o tom do filme, o
que é dado sobretudo pelas canções e pelos números coreografados (1). Este é um
filme que procura puxar para cima, mostrar o lado bom da vida, defender a
família e abandonar os egoísmos pessoais e colectivos. Numa das canções do
filme (hoje muito politicamente incorrecta, diga-se de passagem, mas que
importa?), Mary Poppins explica que se tens de tomar um remédio azedo, uma
colher de açúcar ajuda. Depois temos o lado tenebroso dos banqueiros, todos
vestidos de negro, velhos e rançosos, enterrados numa avareza sem escrúpulos. O
lado oposto à limpidez luminosa de Mary Poppins e do seu mundo. Moralismo
fácil? Sim, é capaz de ser, mas com grande qualidade técnica e artística, o que
o torna não só suportável, como bem-vindo.
De um ponto de vista musical, os
irmãos Robert e Richard Sherman encontravam-se num momento de rara inspiração
que galvanizou a restante equipa para transformar em momentos inesquecíveis
alguns números: “Chim Chim Che-ree”, que ganhou o Oscar de Melhor Canção do
ano, abre para o fabuloso bailado nos telhados de Londres, por entre uma
floresta de chaminés, onde os limpa-chaminés se apresentam como anjos da guarda
dos outros frágeis humanos que lá por baixo labutam no seu dia a dia. O famoso
“Supercalifragilisticexpialidocious”, que
quase ninguém repete, mas que todos gostaríamos de cantar como o faz a
deliciosa Julie Andrews, é outro momento magnífico, tal como “A Spoonful of
Sugar”, cuja moralidade já foi referida, ou “Feed the Birds”, a nostálgica
balada da velha que à porta do banco dá comida aos pombos. Claro que o filme
não é só Julie Andrews e a presença, a seu lado, do multifacetado Dick Van Dyke
é uma outra aposta ganha. Dick Van Dyke, na figura do limpa-chaminés Bert,
canta, dança, faz de homem orquestra, pinta no chão do parque, além de,
obviamente, limpar as chaminés da cidade e de praticar o bem. Ele é o chefe de
bailado do espantoso número nos telhados da cidade, no tema musical “Step In
Time”. Mas também será ele que vai dançar na sequência dos pinguins de
animação. Memorável, apesar da rabugenta P.L. Travers não gostar de animação!
Conhecerá outro grande sucesso, em 1968, como protagonista de um novo musical,
“Chitty Chitty Bang Bang”, sob a direcção de Ken Hughes. Mas este “Mary
Poppins” é o seu momento de suprema glória, senão atente-se no estupendo boneco
extra que ele compõe como dono do banco. David Tomlinson e Glynis Johns formam
o casal Banks, e os miúdos são Karen Dotrice e Matthew Garber.
A Londres de 1910 foi
reconstruída em minúcia nos estúdios Disney da Califórnia, numa demonstração de
virtuosismo cenográfico notável. Mas tecnicamente “Mary Poppins” é ainda hoje
um prodígio que desafia o tempo e vai passando de geração em geração com o
mesmo brilho. Fotografia, som, montagem, efeitos especiais tudo funciona na
perfeição nesta obra que, quando Mary Poppins se eleva nos céus de Londres para
partir para novo destino (novo filme não, porque a radical P.L. Travers não
permitiu), não é só a família Banks que fica com saudades, mas sim (quase)
todos os espectadores. Não direi todos porque há os que acham “Mary Poppins”
uma aberração moralista. Pois sim, está bem, deixem-me um pouco de açúcar,
apesar dos diabetes.
Principais canções e números musicais: de “Mary
Poppins”: Spoonful Of Sugar, Chim Chim Cher-Ee, Perfect Nanny, Step In Time,
Sister Suffragette, Supercalifragilisticexpialidocious, Fidelity Fiduciary Bank,
Practically Perfect, Let's Go Fly A Kite, I Love To Laugh, Jolly Holiday, Feed
The Birds, Pavement Artist, The Life I Lead, Cherry Tree Lane, The Day I Fall
In Love
MARY POPPINS (1964)
Título original: Mary
Poppins
Realização: Robert Stevenson (EUA, 1964); Argumento: Bill Walsh,
Don DaGradi, segundo P.L. Travers (“The "Mary Poppins"); Produção:
Bill Walsh, Walt Disney; Música: Irwin Kostal; Fotografia (cor): Edward Colman;
Montagem: Cotton Warburton; Guarda-roupa: Gertrude Casey, Chuck Keehne, Bill Thomas,
Tony Walton, Luster Bayless; Direcção artística: Carroll Clark, William H.
Tuntke; Decoração: Hal Gausman, Emile Kuri; Maquilhagem: La Rue Matheron, Pat
McNalley; Coreografia: Marc Breaux, Dee Dee Wood; Assistentes de realização: Paul Feiner, Joseph
L. McEveety, Arthur J. Vitarelli, Tom Leetch; Departamento de arte: McLaren
Stewart, Tony Walton, Will Ferrell, Al Gaynor; Som: Robert O. Cook, Dean
Thomas; Efeitos especiais: Peter Ellenshaw, Eustace Lycett, Robert A. Mattey;
Efeitos visuais: Bob Broughton, Art Cruickshank, Lee Dyer; Animação: Hal Ambro,
Jack Boyd, Al Dempster, Don Griffith, Ollie Johnston, Milt Kahl, Ward Kimball,
Eric Larson, Bill Layne, John Lounsbery, Hamilton Luske, Cliff Nordberg, Art
Riley, Frank Thomas, Frank Armitage, Joe Hale, Fred Hellmich, Art Stevens,
Julius Svendsen; Companhia de produção: Walt Disney Productions; Intérpretes: Julie Andrews (Mary
Poppins), Dick Van Dyke (Bert / Mr. Dawes Senior, David Tomlinson (Mr. Banks),
Glynis Johns (Mrs. Banks), Hermione Baddeley (empregado), Reta Shaw
(empregada), Karen Dotrice (Jane Banks), Matthew Garber (Michael Banks), Elsa
Lanchester (Katie Nanna), Arthur Treacher, Reginald Owen, Ed Wynn, Jane
Darwell, Arthur Malet, James Logan, Don Barclay, Alma Lawton, Marjorie Eaton,
Marjorie Bennett, Walter Bacon, Frank Baker, Robert Banas, Marc Breaux, Art
Bucaro, Daws Butler, Cyril Delevanti, George DeNormand, Harvey Evans, Paul
Frees, Betty Lou Gerson, Clive Halliday, Sam Harris, David Hillary Hughes, Bill
Lee, Queenie Leonard, Doris Lloyd, Lester Matthews, Sean McClory, Mathew McCue,
Dal McKennon, Hans Moebus, King Mojave, Alan Napier, Marni Nixon, J. Pat
O'Malley, George Pelling, Thurl Ravenscroft, Richard M. Sherman, Bert Stevens,
Hal Taggart, Larri Thomas, Ginny Tyler, etc. Duração: 139 minutos;
Distribuição em Portugal (DVD e Blu-ray): Walt Disney; Classificação etária: M/
6 anos; Data de estreia em Portugal: 15 de Dezembro de 1965.
AO ENCONTRO DE MR. BANKS
Título original: Saving Mr. Banks
Realização: John Lee Hancock (EUA,
Inglaterra, Austrália, 2013); Argumento: Kelly Marcel, Sue Smith; Produção: Ian
Collie, Mark Cooper, K.C. Hodenfield, Christine Langan, Troy Lum, Andrew Mason,
Alison Owen, Philip Steuer, Paul Trijbits; Música: Thomas Newman; Fotografia
(cor): John Schwartzman; Montagem: Mark Livolsi; Casting: Ronna Kress; Design
de produção: Michael Corenblith; Direcção artística: Lauren E. Polizzi;
Decoração: Susan Benjamin; Guarda-roupa: Daniel Orlandi, Catherine Childers,
Deborah La Mia Denaver, Julie Hewett, Frances Mathias; Direcção de Produção:
Andrew C. Keeter, Philip Steuer, Todd London; Assistentes de realização: Paula
Case, Clark Credle, K.C. Hodenfield, Jeff Okabayashi, Stuart Renfrew;
Departamento de arte: Lorrie Campbell, Martin Charles, Steve Christensen, Mike
Piccirillo, Terry Scott, Sally Thornton; Som: Yann Delpuech, Jon Johnson, David
M. Roberts; Efeitos especiais: J.D. Schwalm; Efeitos visuais: Vincent Cirelli,
Justin Johnson, Lauren Miyake, Simon Mowbray, Luma Pictures; Companhias de
produção: Walt Disney Pictures, Ruby Films, Essential Media &
Entertainment, BBC Films, Hopscotch Features; Intérpretes: Emma
Thompson (P.L. Travers), Tom Hanks (Walt Disney), Annie Rose Buckley (Ginty),
Colin Farrell (Travers Goff), Ruth Wilson (Margaret Goff), Paul Giamatti
(Ralph), Bradley Whitford (Don DaGradi), B.J. Novak (Robert Sherman), Jason
Schwartzman (Richard Sherman), Lily Bigham (Biddy), Kathy Baker (Tommie),
Melanie Paxson (Dolly), Andy McPhee (Mr. Belhatchett), Rachel Griffiths (Tia
Ellie), Ronan Vibert (Diarmuid Russell), Jerry Hauck, Laura Waddell, Fuschia
Sumner, David Ross Paterson, Michelle Arthur, Michael Swinehart, Bob Rusch,
Paul Tassone, Luke Baines, Demetrius Grosse, Steven Cabral, Kimberly D'Armond,
Mia Serafino, Claire Bocking, Dendrie Taylor, etc. Duração: 125 minutos; Distribuição em Portugal: Zon
Lusomundo; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 30 de
Janeiro de 2014.
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