CARTEIRO TOCA SEMPRE DUAS VEZES(1981)
O romance de James M. Cain que está na
base de “O Carteiro Toca sempre Duas Vezes” é uma das obras mais polémicas e
controversas da rica e complexa literatura policial norte-americana. A sua
primeira edição data de 1934, tornando-se logo um “best seller” em muitos
Estados e uma obra proscrita noutros (em Boston, por exemplo, era julgada por
obscenidade, enquanto no Canadá era proibida a sua venda). Apreciado desde logo
pelo meio cinematográfico norte-americano (a MGM tentou quase de imediato a sua
transposição para o cinema), este romance de amor e morte, de paixão e ódio
esbarrava obviamente contra as ferozes prescrições do código de censura Haye,
que impedia a sua adaptação. Foi, por isso que as primeiras versões desta obra
surgiriam na Europa: em 1939, em França, Pierre Chenal roda “Le Dernier
Tournant” (com Michel Simon no papel do marido assassinado) e, em 1942, em
Itália, o então estreante Luchino Visconti abalançava-se no seu primeiro filme
de fundo, pondo em imagens o mesmo romance de James M. Cain, agora sob a
designação de “Ossessione” (com Massimo Giroti e Clara Calamar nos papéis dos
“amantes diabólicos”, título da tradução francesa). .
Só em 1945, depois de duas outras obras
de Cain terem passado ao cinema (“Double Indemnity” e “Mildred Pierce”) é que
“The Postman Always Rings Twice” conseguiu saltar para o ecrã, mesmo assim numa
versão algo estilizada, que adultera uma parte das características essenciais
do romance. Obedecendo, no entanto, ao espírito da época e aos ditames da
censura, Tay Garnet dirige Lana Turner e John Garfield numa película que se
revela extremamente interessante e enriquece o “filme negro”.
A partir de 1945, várias foram as
tentativas empreendidas por Hollywood para reeditar esta obra. Caberia a Bob
Rafelson a oportunidade. Bob Rafelson foi o “autor” de “Five Easy Pieces”
(Destinos Opostos), um filme de 1970 que revelava de imediato um cineasta. Mas
a sua sorte teve curta duração. A seguir a esta obra rodaria duas outras (“The
King of Marvin Gardens” e “Stay
Hungry”)
que redundaram em completos “flops” comerciais, e fizeram esquecer a boa
estrela de 70. Entre os produtores de Hollywood, Rafelson era nome que não
garantia um bom empate de capital. Por isso se compreende que o cineasta tenha
aceitado esta “encomenda”, sem acreditar muito nela de início.
Mas à medida que ia trabalhando no
argumento, de colaboração com David Mamet, Rafelson foi-se dando conta da força
do material que tinha entre mãos. Mantendo-se escrupulosamente fiel ao texto de
James M. Cain (o que até 1981 nunca havia acontecido, mercê de diversas
imposições), o cineasta deixa-se seduzir pelo ambiente social e moral de um
período determinado (e determinante) da história da América (estamos nos
últimos anos da Grande Depressão, com desemprego e miséria, inflação e
racionamento) e pelas suas consequências no comportamento psicológico de três
ou quatro personagens que irão ser apanhadas pelo vértice de uma história de
desejo incontrolado que se transforma numa obsessão de trágicas repercussões.
Frank Chambers (Jack Nicholson), que tudo nos diz ser um daqueles vagabundos de
estrada que povoam a América, sobrevivendo à base de expedientes diversos, fica
como empregado de estação de serviço, numa pequena estrada da Califórnia. Os
seus patrões são Nick Papadakis (John Colicos) e Cora Papadakís (a
surpreendente e fascinante Jessica Lang, a mesma que fora, anos antes, a presa
de King Kong na versão Dino de Laurentiis). A paixão que envolve Frank e Cora é
brutal e totalmente amoral, pecaminosa e perversa, sem que, no entanto, de vez
em quando, não deixe de assomar aos seus rostos uma expressão de pureza, uma
sensação de anjos caídos e perdidos no lamaçal. Nick é o empecilho grego que é
necessário afastar. Para isso forjam-se os acidentes “fortuitos”: o primeiro,
uma queda na banheira, depois um desastre de carro. Mas a polícia, desconfia,
acaba por prender e julgar o casal, que consegue salvar-se da cadeia com base
numa falcatrua que os transcende, e que inclui os interesses de companhias de
seguros. Não entrando em pormenores de argumento, que não interessam por agora,
diremos apenas que os primeiros encontros de Frank e Cora são uma explosão de
desejo armazenado que se liberta de forma selvagem. Excelente é a cena de amor
(será amor essa junção de corpos que parece apenas saciar a carne, sem nenhuma
outra contrapartida) que une pela primeira vez Frank e Cora numa mesa de
cozinha, por entre pães já cozidos e massa e farinha, imagens de um erotismo
feroz, sem limites nem fronteiras, que nos restitui a face do desejo como raras
vezes o cinema no-lo havia mostrado.
Com o andar dos tempos, a vida em
conjunto, os crimes de que ambos são co-autores, as contrariedades por que têm de
passar e conjuntamente enfrentar, fazem de Frank e Cora um casal unido já por
sentimentos que transcendem o simples (?) desejo, mas aí, o destino irá
demonstrar que “o carteiro toca sempre duas vezes” e que se da primeira vez se
livraram da má sorte, da segunda não conseguem fugir.
Notável é a fotografia do mestre sueco
Sven Nykvist, bem servida pelos cenários de George Jenkins. Jack Nicholson é o
actor versátil e nervoso que já nos habituou com interpretações brilhantes, mas
Jessica Lang é a grande, a enorme revelação. Ela é o grande trunfo de Bob
Rafelson que soube tirar todo o partido desse corpo sensual, desse rosto de uma
“beleza maldita”, desses olhos de um apetite voraz. Acreditávamos na altura que
Jessica Lang seria a grande vedeta americana da década de 80, e logo no ano
seguinte nos daria um brilhante “Frances”. Depois de uma passagem mais ou menos
inócua pelas mãos de King Kong, Jessica Lang desperta com o beijo do monstro
sob a direcção de Bob Rafels. Inesquecível.
O
CARTEIRO TOCA SEMPRE DUAS VEZES
Título
original: The Postman Always Rings Twice
Realização: Bob Rafelson
(EUA, RFA, 1981); Argumento: David Mamet, segundo romance de James M. Cain;
Produção: Michael Barlow, Andrew Braunsberg, Charles Mulvehill, Bob Rafelson;
Música: Michael Small; Fotografia (cor): Sven Nykvist; Montagem: Graeme
Clifford; Casting: Terry Liebling; Design de produção: George Jenkins;
Decoração: Robert Gould; Guarda-roupa: Dorothy Jeakins; Maquilhagem: Dorothy J.
Pearl, Toni-Ann Walker; Direcção de Produção: Gerald R. Molen; Assistentes de
realização: Nick Marck, Bill Scott; Departamento de arte: Donald Krafft,
William Maldonado, Ray Mercer Jr., William Ladd Skinner; Som: Bub Asman, Robert
G. Henderson, Brian L. McCarty, Alan Robert Murray, Art Rochester, Norman B.
Schwartz, Richard Thornton, Bill Varney; Efeitos especiais: Jerry D. Williams,
Jan Aaris, Bruno Van Zeebroeck; Companhias de produção: CIP Filmproduktion
GmbH, Lorimar Film Entertainment, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), Northstar
International; Intérpretes: Jack
Nicholson (Frank Chambers), Jessica Lange (Cora Papadakis), John Colicos (Nick
Papadakis), Michael Lerner (Mr. Katz), John P. Ryan (Kennedy), Anjelica Huston
(Madge), William Traylor (Sackett), Thomas Hill (Barlow), Jon Van Ness, Brian
Farrell, Raleigh Bond, William Newman, Albert Henderson, Ken Magee, Eugene
Peterson, Don Calfa, Louis Turenne, Charles B. Jenkins, Dick Balduzzi, John
Furlong, Sam Edwards, Betty Cole, Joni Palmer, Ron Flagge, Lionel Mark Smith,
Brion James, Frank Arno, Virgil Frye, Kenneth Cervi, Chris Rellias, Theodoros
A. Karavidas, Basil J. Fovos, Nick Hasir, Demetrios Liappas, James O'Connell,
William H. McDonald, Elsa Raven, Kopi Sotiropulos, Tom Maier, Glenn Shadix,
Tani Guthrie, Carolyn Coates, Jim S. Cash, Christopher Lloyd (caixeiro
viajante), James P Axiotis, Morgan Blanchard, Luther Fear, Chuck Liddell, etc. Duração: 122 minutos; Distribuição em
Portugal: Warner (DVD); Classificação etária: M/ 16 anos; Data de estreia em
Portugal: 30 de Outubro de 1981.
JESSICA
LANGE (1949 - )
Apareceu no cinema como protagonista.
Era a Bela junto do Monstro, na versão de 1976, de “King Kong”. Foi um sucesso,
mas muitos acreditaram que esse êxito se ficava a dever à sua beleza e formas
exuberantes. Mas três anos depois impunha-se definitivamente como uma grande
actriz em filmes como “All That Jazz”, de Bob Fosse, “The Postman Always Rings
Twice”, de Bob Rafelson, “ Tootsie” de Sydney Pollack, “Frances”, de Graeme
Clifford ou “Country”, de Richard Pearce. Foi assim que começou o triunfo. No
mesmo ano de 1982, foi nomeada para Melhor Actriz (Frances), e Melhor Actriz
Secundária (Tootsie), que ganharia. Em 1984, com “Country”, voltaria a ser
nomeada, bem assim como com Sweet Dreams (1985) e Music Box (1989). Voltaria a
ganhar com “Blue Sky”, em 1995. E ao lado dos Oscars, guarda uma considerável
quantidade de prémios e recompensas. Ela é uma das actrizes mais premiadas entre
1980 e 2000, com uma carreira extremamente bem gerida e magnificamente
interpretada. “Crimes of the Heart”, “Far North”, “Music Box”, “Cape
Fear” ou “Night and the City” são apenas mais alguns exemplos.
Jessica Phyllis Lange nasceu a 20 de
Abril de 1949, em Cloquet, Minnesota, EUA, filha de Dorothy Florence e Albert
John Lange, um professor e caixeiro-viajante. Estudou na Cloquet High School e
recebeu uma bolsa para estudar arte e fotografia na Universidade de Minnesota,
onde conheceu um fotógrafo espanhol. Foi casada com Francisco Paco Grande (1970
- 1981), casamento que acabou em divórcio. Mas, durante o casamento, usufruíram
de uma vida boémia, viajaram pelos EUA, México e França, onde se separaram. Foi
modelo em Nova Iorque, na Wilhelmina Models, onde foi descoberta por Dino De
Laurentiis, que procurava a protagonista para colocar nas mãos de King Kong,
Assim foi e o resto já sabem. Em 1992, estreia-se na Broadway, no papel de
"Blanche" na célebre peça de Tennessee Williams, "A Streetcar
Named Desire". Na televisão, em 2011, entrou para o elenco de “American
Horror Story”, onde permaneceu durante quatro temporadas (Murder House, Asylum,
Coven e Freak Show). Manteve uma longa relação com o actor e dramaturgo Sam
Shepard (1982-2009). Classificada em 64º lugar no inquérito da revista “Empire”
sobre as “ 100 Sexiest Stars in Film History”.
Filmografia
Como
actriz:
1976: King Kong (King Kong), de John Guillermin; 1979: All That Jazz (All That
Jazz: O Espectáculo Vai Começar), de Bob Fosse; 1980: How to Beat the High Co$t
of Living (Não Há Nada Para Ninguém), de Robert Scheerer; 1981: The Postman
Always Rings Twice (O Carteiro Toca Sempre Duas Vezes), de Bob Rafelson; 1982:
Tootsie (Tootsie - Quando Ele Era Ela), de Sydney Pollack; Frances (Frances), de
Graeme Clifford; 1984: Country (Country - A minha terra), de Richard Pearce;
1985: Sweet Dreams (Depois da Meia-Noite), de Karel Reisz; Cat on a Hot Tin
Roof (TV); 1986: Crimes of the Heart (Crimes do Coração), de Bruce Beresford;
1988: Everybody's All-American (Morrer de Amor), de Taylor Hackford; Far North
(Ordem de Execução), de Sam Shepard; 1989: Music Box (O Enigma da Caixa de
Música), de Costa-Gavras; 1990: Men Don't Leave (Homens de Verdade), de Paul
Brickman; 1991: Cape Fear (O Cabo do Medo), de Martin Scorsese; 1992: Night and
the City (Noite na Cidade), de Irwin Winkler; O Pioneers! (TV); 1994: Blue Sky
(Céu Azul), de Tony Richardson; 1995: Rob Roy (Rob Roy), de Michael
Caton-Jones; 1995: A Streetcar Named Desire (TV); 1995: Losing Isaiah (Todos
Diferentes, Todos Iguais), de Stephen Gyllenhaal; 1997: A Thousand Acres
(Amigas e Rivais), de Jocelyn Moorhouse; 1998: Hush (Relação Mortal), de
Jonathan Darby; Cousin Bette, de Des McAnuff /
Stories from My Childhood (TV); 1999: Titus (Titus), de Julie Taymor;
2001: Prozac Nation (Prozac), de Erik Skjoldbjærg; 2003: Big Fish (O Grande
Peixe), de Tim Burton; Normal (TV); Masked and Anonymous, de Larry Charles;
2005: Neverwas (Terra Mágica), de Joshua Michael Stern; 2005: Broken Flowers
(Broken Flowers - Flores Partidas), de Jim Jarmusch; Don't Come Knocking
(Estrela Solitária), de Wim Wenders; 2006: Bonneville (Bonneville), de
Christopher N. Rowley; 2007: Sybil (TV); 2009: Grey Gardens (TV); 2011: Murder
House, de Bradley Buecker / American Horror Story (TV); 2012: The Vow (Prometo
Amar-te), de Michael Sucsy; 2014: Freakshow The Gambley, de Rupert Wyatt; 2015:
Wild Oats, de Andy Tennant.
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