AS COISAS DA VIDA (1970)
Quando
vi, na estreia, “As Coisas da Vida”, de Claude Sautet, recordo que o filme me
impressionou muito, quer pelo retrato que oferecia da sociedade francesa do
tempo, quer pela forma como a obra estava estruturada. Estávamos no dealbar dos
anos 70, Sautet lançava-se numa panorâmica discreta mas incisiva sobre a média
burguesia francesa, neste caso um casal, ele arquitecto, ela tradutora, bem
instalados na vida, ele a despedir-se de um casamento anterior, ela a sofrer
com a instabilidade momentânea, ele de poucos mas sólidos amigos, íntegro na
forma de conceber o seu trabalho, o que lhe valia discussões acesas com os
construtores civis e os donos dos edifícios, uma ou outra questão familiar, a
voz off, sempre a voz off em pensamento, antecipando-se às acções. De resto, a
narrativa é sincopada, inicia-se com um acidente de viação, ele vai a caminho
de uma reunião, escreveu uma carta de despedida, que não colocou no correio,
arrependido, pede à mulher para vir ter com ele, mas não destruiu a carta, e
agora, o acidente, que será da carta?, tudo em off, ele estendido sobre a
relva, à chuva, enquanto aguarda pela chegada de uma ambulância que o conduza
ao hospital. Coisas da vida, dizem… Alguém prepara as “coisas” de uma
determinada forma, mas depois o acaso, o destino, seja o que for, dispõe de
maneira diferente.
Tudo
isto era novidade em 1970, hoje já não o é, muita água passou nos rios, o que
era uma surpresa em 70 é agora uma banalidade adquirida por um espectador
mediano. Mas há que recuar no tempo e chamar a atenção precisamente para o que
era novo na época em que o filme foi realizado. Claude Sautet foi saudado pelo
rigor da análise, pela forma descontínua como organizava estas “coisas da
vida”. Também pela maneira como dirigia os seus actores, os magníficos Romy
Schneider, Michel Piccoli, Lea Massari, e todos os outros. Romy Schneider
estava no auge da sua maturidade e beleza, concisa e rigorosa no registo,
perspectivando uma notável carreira no cinema francês, depois da sua época
Sissi e de um período internacional, dedicado a grandes superproduções. Com “A
Piscina” e “As Coisas da Vida” Schneider entrega-se por completo à produção
francesa, arrancando um conjunto quase ininterrupto de grandes trabalhos que a
impuseram como grande actriz.
Claude
Sautet vinha de policiais narrados com eficácia e inteligência, ambos com Lino
Ventura, “Classe tout risques” (Contra todos os riscos, 1960) e “L'Arme à
gauche” (Um Iate para a Jamaica, 1965), e preparava uma filmografia de extrema
coerência que se impõe durante os anos 70 e 80: “O Estranho Caso do Inspector
Max”, “César e Rosália”, “Vincent, François, Paul... et les autres” (Os
Inseparáveis), “Entre Duas Mulheres”,
“Uma História Simples”, “Um Mau Filho”, “Um Homem Apaixonado”, “Alguns Dias
Comigo”, terminando já nos anos 90, com “Um Coração no Inverno” e “Nelly &
Monsieur Arnaud”, seu último filme. Sautet nasceu em 1924 em Montrouge, França,
e viria a falecer em Paris, em 2000. Terá sido o sucesso público (e de crítica)
que “As Coisas da Vida” justificaram que lhe permitiu uma carreira extremamente
pessoal, virada para a análise psicológica e sociológica de pequenos grupos de
pessoas, os seus dramas e aspirações, que hoje nos permitem compreender melhor
um tempo e um espaço.
“Les
Choses de la Vie” parte de um romance de Paul Guimard, que colaborou com Sautet
e Jean-Loup Dabadie na sua adaptação ao cinema. Será de referir ainda a
partitura musical de Philippe Sarde que acompanha a preceito a acção. Grupos de
amigos, muito fumo, cafés, amores e desamores, frustrações e angústias,
esperanças e desilusões, uma relativa tranquilidade económica e uma profunda
inquietação emocional. Nem sempre é esteticamente bonito. Tal como a vida
destas pessoas. Eis o cinema de Suatet. Coisas da Vida.
AS COISAS DA VIDA
Título original: Les choses de la vie
Realização: Claude Sautet
(França, Itália, Suíça, 1970); Argumento: Claude Sautet, Jean-Loup Dabadie,
Paul Guimard, segundo romance deste último; Produção: Jean Bolvary, Raymond
Danon, Roland Girard; Música: Philippe Sarde; Fotografia (cor): Jean Boffety;
Montagem: Jacqueline Thiédot; Decoração: André Piltant; Guarda-roupa: Jacques
Cottin; Maquilhagem: Jean-Pierre Eychenne, Irène Servet; Direcção de Produção:
Ralph Baum, Paul Dufour, Jean Guillaume;
Assistentes de realização: Jean-Claude Sussfeld, Claude Vital; Departamento de
arte: Jean Catala, Frédéric Tsikinsan; Som: René Longuet, Jean Nény, Alex
Pront; Companhias de produção: Fida Cinematografica, Lira Films, Sonocam; Intérpretes: Michel Piccoli (Pierre
Bérard), Romy Schneider (Hélène), Gérard Lartigau (Bertrand Bérard), Jean
(François), Boby Lapointe, Hervé Sand, Jacques Richard, Betty Beckers,
Dominique Zardi, Gabrielle Doulcet, Roger Crouzet, Henri Nassiet, Claude
Confortès, Jerry Brouer, Jean Gras, Marie-Pierre Casey, Marcelle Arnold,
Jean-Pierre Zola, Max Amyl, Isabelle Sadoyan, Gérard Streiff, Lea Massari
(Catherine Bérard), Clément Bairam, Christian Bertola, Lucie Blome, Béatrice
Boffety, M. Carmet, Henri Coutet, Raoul Delpard, Agnès Duval, Lucien Frégis,
Karine Jeantet, Pierre Londiche, Luigi, Jean Piccoli, etc. Duração: 89 minutos;
Distribuição em Portugal: Studio Canal /Universal (DVD); Classificação etária:
M/ 12 anos.
ROMY SCHNEIDER (1938 – 1982)
Romy
Schneider não iniciou a carreira com a figura de Sissi, mas a verdade é que,
durante grande parte da sua vida, se viu associada a este personagem e a um
ciclo de filmes que para sempre a marcaram. Rosemarie Magdelena Albach-Retty,
de nome de baptismo, nasceu a 23 de Setembro de 1938, em Viena, Áustria, e
viria a falecer em Paris, França, a 29 de Maio de 1982. O atestado regista uma
paragem cardíaca, mas nunca se aclarou devidamente as causas. Falou-se numa
dose excessiva de barbitúricos.
Os
pais, Wolf Albach-Retty e Magda Schneider, eram actores e sobretudo a mãe teve
uma influência enorme no início da carreira de Romy, controlando-a,
supervisionando-a. Estreou-se aos 15 anos no cinema, em “Entre Dois Amores”, de
Hans Deppe, mas fez furor, a partir de 1955, com o ciclo de filmes dedicados a
Sissi, a imperatriz: “Sissi”, de Ernst Marischka; “Sissi, die junge Kaiserin”
(Sissi, a Jovem Imperatriz) e “Sissi, Schicksalsjahre einer Kaiserin” (Sissi e
o Destino), todos de Ernst Marischka. Muito presa à imagem imperial que a sua
beleza e juventude ajudaram a cimentar, rodou diversas outras obras nos mesmos
ambientes: “Die Deutschmeister” (Parada Imperial), de Ernst Marischka; “Kitty
und die große Welt” (Kitty e os 4 Grandes), de Alfred Weidenmann; “Monpti”
(Monpti), de Helmut Käutner; “Scampolo” (A Miúda), de Alfred Weidenmann;
“Mädchen in Uniform” (Raparigas de Uniforme), de Géza von Radványi; “Christine”
(Cristina), de Pierre Gaspard-Huit ou “Katia” (Katia), de Robert Siodmak. Ao
rodar “Christine”, apaixona-se por Alain Delon , o actor com quem contracenava
e parte para Paris. Voltam a reunir-se em “Plein Soleil” (À Luz do Sol), de
René Clément, e são considerados um casal sensação. Por essa altura surge numa
série de filmes de grandes realizadores e de grande espectáculo: “O Processo”,
de Orson Welles, “Os Vitoriosos”, de Carl Foreman, “O Cardeal”, de Otto
Preminger, “O Assassinato de Trotsky”, de Joseph Losey, ou “Luís da Baviera”,
de Luchino Visconti. Confessou um dia que “trabalhou com os maiores tiranos,
Preminger, Welles, Visconti”. A partir de “A Piscina” e “As Coisas da Vida”
toda a sua carreira decorre quase sempre em França, destacando-se a grande
coerência e intensidade das suas fulgurantes interpretações que lhe reservaram
um lugar de “eleita entre as eleitas” dos espectadores mundiais. Separada de
Delon em 1964, casou com Harry Meyen, de quem teve um filho, David-Christopher.
Novo divórcio em 1975. No mesmo ano, recebe o seu primeiro César como Melhor
Actriz em “O Importante É Amar”, a que se segue outro, três anos depois, com
“Uma História Simples”. Volta a casar com o seu secretário Daniel Biasini, de
quem tem uma filha. Em 1981, sofre um rude golpe de que nunca mais se recompõe
quando o filho, David Haubenstock, morre trespassado pelos varões metálicos dos
limites de um jardim. Um ano depois, Romy Schneider morre Paragem cardíaca.
Fica a lenda.
Filmografia
Como actriz: 1953: Wenn der weiße Flieder
wieder blüht (Entre Dois Amores), de Hans Deppe; 1954: Feuerwerk (Fogo de
Artifício), de Kurt Hoffmann; Mädchenjahre einer Königin (Juventude de Uma
Raínha), de Ernst Marischka; 1955: Der letzte Mann (O Último dos Homens), de
Harald Braun; Die Deutschmeister (Parada Imperial), de Ernst Marischka; Sissi
(Sissi), de Ernst Marischka; 1956: Kitty und die große Welt (Kitty e os 4
Grandes), de Alfred Weidenmann; Sissi, die junge Kaiserin (Sissi, a Jovem
Imperatriz), de Ernst Marischka; 1957: Monpti (Monpti), de Helmut Käutner;
Robinson soll nicht sterben (A Ilha Encantada de Robinson), de Josef von Báky;
Sissi, Schicksalsjahre einer Kaiserin (Sissi e o Destino), de Ernst Marischka;1958:
Scampolo (A Miúda), de Alfred Weidenmann; Mädchen in Uniform (Raparigas de
Uniforme), de Géza von Radványi; Christine (Cristina), de Pierre Gaspard-Huit;
1959: Die Halbzarte (Eva ou Diário de uma Rapariga), de Rolf Thiele; Ein Engel
auf Erden (Um Anjo de Rapariga), de Géza von Radványi; Die schöne Lügnerin (A
Bela Mentirosa), de Axel von Ambesser; Katia (Katia), de Robert Siodmak; Plein
Soleil (À Luz do Sol), de René Clément; 1961: Boccace 70 (Boccaccio '70),
episódio “Il Lavoro” de Luchino Visconti; Die Sendung der Lysistrata (TV), de
Fritz Kortner; 1961: Le Combat dans l'île (O Duelo na Ilha), de Alain Cavalier;
1962: Forever My Love (versão condensada para os EUA de dois filmes sobre
Sissi); Le Procès (O Processo), de Orson Welles; The Victors (Os Vitoriosos),
de Carl Foreman; 1963: The Cardinal (O Cardeal), de Otto Preminger; 1964: Good
Neighbor Sam (Empresta-me o Teu Marido), de David Swift; L'Enfer, de
Henri-Georges Clouzot (inacabado); 1965: L'Amour à la mer, de Guy Gilles; Paris
brûle-t-il ?, de René Clément (cenas não incluídas na versão final); What's new
Pussycat ? (Que há de novo, gatinha?), de Clive Donner; 1966: 10:30 P.M.
Summer, de Jules Dassin; La Voleuse, de Jean Chapot; Triple cross (O Maior
Espião da História), de Terence; 1968: Otley (Espião por Acidente), de Dick
Clement; La Piscine (A Piscina), de Jacques; 1969: My lover, my son, de John
Newland; 1970: Les Choses de la vie (As Coisas da Vida), de Claude Sautet; Qui?
(Quem?), de Léonard Keigel; Bloomfield (A Queda de um Ídolo), de Richard
Harris; La Califfa (A Califa), de Alberto Bevilacqua; Max et les ferrailleurs
(O estranho caso do Inspector Max), de Claude Sautet; 1971: The Assassination
of Trotsky (O Assassinato de Trotsky), de Joseph Losey; 1972: Ludwig (Luís da
Baviera), de Luchino Visconti; César et Rosalie (César e Rosália), de Claude
Sautet; 1973: Le Train (O Último Comboio), de Pierre Granier-Deferre; 1973: Un
amour de pluie (Um Amor Passageiro), de Jean-Claude Brialy; Le Mouton enragé (O
cordeiro enfurecido), de Michel Deville; Le Trio infernal (Le trio infernal),
de Francis Girod; 1974: L'important c'est d'aimer (O Importante É Amar), de
Andrzej Żuławski; Les Innocents aux mains sales (Os Inocentes de Mãos Sujas),
de Claude Chabrol; 1975: Le Vieux Fusil (A mulher, o amor e o ódio), de Robert
Enrico; 1976: Une femme à sa fenêtre, de Pierre Granier-Deferre; Mado (Entre
Duas Mulheres), de Claude Sautet; Gruppenbild mit Dame), de Aleksandar
Petrovic; Tausend Lieder ohne Ton (TV); 1978: Une histoire simple (Uma História
Simples), de Claude Sautet; 1979: Bloodline (Laços de Sangue), de Terence
Young; Clair de femme (A Luz da Paixão), de Costa-Gavras; La mort en direct ou Death watch (A Morte em
Directo), de Bertrand Tavernier; 1980: La Banquière (A Banqueira), de Francis
Girod; 1981: Fantasma d'amore (Fantasma de Amor), de Dino Risi; Garde à vue
(Sem Culpa Formada), de Claude Miller; 1982: La Passante du Sans-Souci (O Bar
da Última Esperança), de Jacques Rouffio; 2009: L'Enfer de Henri-Georges
Clouzot, de Serge Bromberg e Ruxandra Medrea (documentário sobre o filme
inacabado “L'Enfer”, de 1964).
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