HELLO, DOLLY (1969)
A câmara de Gene Kelly sobe as escadarias dos
"Harmonica Gardens" e vai enquadrar as costas de um velho negro que
dirige uma orquestra de jazz. Os braços estendidos, os ombros já encurvados,
uma pequena batuta prolongando o negro da casaca, dir-se-ia o sacerdote de uma
liturgia de sons por ele comandados. A câmara de Gene Kelly aproxima-se então,
com respeito, e vai com ela um grande amor e a reverência devida ao
"Rei". Com ela vamos também nós, direitos às costas daquele velho
negro de ralos cabelos brancos que, súbito, se volta e se descobre:
- “That's Louis, Dolly”...
- “Hello, Louis”..., responde-lhe Barbara Streisand, e
nestas breves palavras, nestes gritos de amor que a memória só conhece
raramente, está o mais belo momento de “Hello, Dolly”, filme.
O velho negro, de ombros encurvados já, continua naquela
voz rouca de quem viveu eternidades e conhece a vida por dentro e por fora. Ele
é o "Rei", ressuscitando um velho poema. Aí o temos, de corpo
inteiro, desarmado, sem o velho trompete cravado nos lábios, unicamente com a
sua voz rouca e o amor esgueirando-se pelo olhar. É o "Rei" que
estende a mão a Barbara, e com ele regressa toda a nostalgia, toda a
sumptuosidade litúrgica, toda a turbulência musical, toda a alegria
incomensurável de um cortejo em New Orleans. O mais belo momento de “Hello,
Dolly”. Um momento que nos obriga a ver e rever um musical. Um momento sublime
que ficará por certo na história do cinema e do musical. Uma história que não é
só feita de filmes. Mas de pessoas. De rostos. De vozes. Da rouquidão arrastada
de um velho negro do jazz. E de uma grande vedeta com a força telúrica de uma
Barbara Streisand, aqui num dos seus grandes momentos de actriz e cantora.
Com “Hello, Dolly”, datado de 1969, Gene Kelly regressava
à realização cinematográfica depois de alguns anos de interregno, e regressava
também ao musical: um regresso, se não em cheio, pelo menos em beleza, dado que
o director, coreógrafo, bailarino e actor de tantos e tantos clássicos do
género regressava sem vestígios de senilidade, sem envelhecimento formal, sem
qualquer indício de quebra, de vigor ou de invenção. Antes pelo contrário:
“Hello, Dolly” surgia em 1969 nos ecrãs de todo o mundo como mais um notável
exercício de cinema, uma baforada de vitalidade e de ritmo num género exausto
por essa altura. Um majestoso espectáculo que passava a constituir, daí em
diante, uma nova referência obrigatória na história de um género de prestigiada
linhagem.
Encadeado vertiginoso de canções e bailados, “Hello,
Dolly” é a transposição para o cinema de um espectáculo musical de grande
sucesso na Broadway - 2.844 representações no St. James Theatre, de Nova
Iorque, depois da sua estreia a 16 de Janeiro de 1964. A produção do
espectáculo estivera a cargo de David Merrick, com direcção e coreografia de
Gower Champion. Na base do espectáculo, uma peça teatral de Thornton Wilder,
"The Matchmaker", adaptada por Michael Stewart, com música e líricas
de Jerry Herman.
Mas a história desta adaptação é curiosíssima. A versão
original da intriga remonta a uma peça teatral inglesa, “A Day Well Spent”, de
John Oxenford, estreada em Londres em 1835. Alguns anos depois, Johann Nestroy
escrevia uma versão alemã, que subiria a cena em 1842, em Viena de Áustria, com
o título “Einen Jux Will Er Sich Machen”. Quase um século depois, o
norte-americano Thornton Wilder, segundo sugestão de Max Reinhardt, escreve uma
sua primeira adaptação a que chamou “The Merchant of Yonkers”, que se estreou
no teatro, com Jane Cowl como protagonista. Não satisfeito com o resultado,
cerca de quinze anos depois, o mesmo Thornton Wilder volta ao tema e refaz a
história que passa a chamar-se “The Matchmaker”. É na temporada de 1954-55 que
a peça sobe à cena, em Londres, com Ruth Gordon na figura de Dolly Levi. A 5 de
Dezembro de 1955, David Merrick estreia esta nova peça em Nova Iorque no The
Theatree Guild, para 486 representações, com um cast que inclui, além de Ruth
Gordon, Loring Smith, Eileen Herlie, Arthur Hill e Robert Morse. Daqui nasce, em
1958, uma versão cinematográfica, homónima, dirigida por Joseph Anthony,
interpretada por Shirley Booth, Shirley MacLaine, Anthony Perkins, Paul Ford,
Wallace Ford e Robert Morse. É, portanto, desta versão que o mesmo David
Merrick se socorre para a criação do musical “Hello, Dolly” que, ao tempo da
sua estreia em salas da Broadway, se transformou no maior sucesso musical em
palco. Seria, meses depois, ultrapassado por “O Violino no Telhado”.
Mas este sucesso não seria fácil de conseguir. Antes de
aparecer na Broadway, o musical rodou por algumas cidades dos EUA e as
primeiras impressões foram "desastrosas". Adaptador e músico foram
reescrevendo o que parecia fraco, até chegarem à versão que surgiria em palco
em N. Y. O argumento de “Hello, Dolly” continuaria a ser, no entanto, tanto no
palco como no ecrã, o seu calcanhar de Aquiles. Lá chegaremos...
Desse elenco original faziam parte Carol Channing, David
Burns, Eileen Brennan, Charles Nelson Reilly, Sondra Lee, Jerry Dodge, Alice
Playten, Igors Gavon. O espectáculo recebeu 10 Tonys (correspondentes aos
Oscars, em teatro), entre os quais o de melhor produção de um musical, melhor
autoria, melhor direcção, melhor música, melhor coreografia e melhor actriz.
Para os críticos do “Variety”, seria o mais votado para quatro categorias,
melhor direcção de um musical, melhor actriz, melhor cenografia e melhor
lírica.
Houve quem considerasse que “Hello, Dolly” era um musical
de um tema só, precisamente "Hello, Dolly", e que os restantes
números musicais eram bastante inferiores a esse. A partitura
conta, todavia, com alguns outros bons momentos, entre as principais canções:
"I Put My Hand In", "It Takes a Woman", "Put on Your
Sunday Clothes", "Ribbons Down My Back", "Motherhood",
"Dancing", "Before the Parade Passes By",
"Elegance", "It Only Takes a Moment" ou "So Long
Dearie".
Voltando à adaptação cinematográfica, haverá que referir
que ela foi empreendida por Ernest Lehman, com realização de Gene Kelly, música
e líricas de Jerry Herman e Michael Stewart, coreografia de Michael Kidd (o
mesmo desse espantoso “Sete Noivas para Sete Irmãos”), fotografia (em Todd-AO)
de Harry Stradling, direcção musical de Lennie Hayton e Lionel Newman e
direcção artística de John de Cuir.
Nos Oscars do ano, ganharia o de melhor filme e melhor
fotografia, e seria ainda nomeado para melhor direcção musical, melhor direcção
artística e melhores cenários.
O argumento é frágil e demasiado secundário para sobre
ele nos determos com muita atenção. Serve unicamente de pretexto a uma
"feérie" e é esta que está em causa. Pouco nos interessa saber que
uma jovem viúva (que se ocupa "profissionalmente" a arranjar
casamentos para outros) resolva, subitamente, preocupar-se com o seu futuro e
"caçar" um milionário que diz que "o máximo a que um americano
pode aspirar é ter muito dinheiro". Estamos em Nova Iorque, 1880, e tudo
terá de ser visto nesta perspectiva, tanto mais que o filme reflecte um
saudável e subtil sentido crítico.
Mas o que funciona como centro motor é a reconstituição
de um tempo histórico, estilizado pela forma como nos é transmitido. É a
América de fins do século XIX, a eufórica América que ainda se descobre a si
própria, e o faz cantando e dançando, transbordante de alegria e vitalidade.
“Hello, Dolly” é, neste aspecto, uma espécie de
"revista", na sua sucessão de "quadros", que se prolonga
por duas horas e meia de um turbilhão de cores e sons. O rosto de uma cidade
onde são visíveis as profundas desigualdades sociais, mas onde os conflitos se
resolvem ainda ao ritmo de uma orquestra comandada por um improvisado, mas
admirável, Louis Armstrong (cremos que na sua última aparição cinematográfica).
Haverá essencialmente que salientar a qualidade plástica
das grandes sequências coreografadas: a partida de um comboio carregado de
habitantes de uma pequena aldeia nos arredores de Nova Iorque, com destino à
capital; a parada que fecha em apoteose a primeira parte do filme (e que
constitui, só por si, um inolvidável momento de musical); ou ainda esses três
quartos de hora finais, inteiramente limitados pelas paredes de um restaurante,
onde se sucedem vertiginosos bailados, cada vez mais turbulentos, com um ritmo
de marcação inexcedível, onde é bem visível o dedo de Michael Kidd.
Que “Hello, Dolly” não aguenta a mais rudimentar
aproximação crítica ao nível do argumento, essa é uma conclusão que se impõe
extrair rapidamente, para melhor saborearmos depois, sem problemas de
consciência, esse impressionante espectáculo musical, onde são ainda de
sublinhar o trabalho e o talento de Barbara Streisand, não só como actriz, mas
sobretudo como personalidade e cantora, para lá da presença de Walter Matthau,
que compõe com brilho e humor a figura de um excêntrico milionário. Outros
actores: Michael Crawford, Marianne McAndrew, E.J. Peaker, Danny Lockin, Louis
Armstrong, Tommy Tune e David Hurst.
HELLO, DOLLY!
Título original:
Hello, Dolly!
Realização: Gene
Kelly (EUA, 1969); Argumento: Ernest Lehman, segundo peça teatral de Michael
Stewart, inspirada em Thornton Wilder ("The Matchmaker") e Johann
Nestroy ("Einen Jux will er sich machen"); Produção: Roger Edens,
Ernest Lehman; Fotografia (cor): Harry Stradling Sr.; Montagem: William
Reynolds; Casting: Alixe Gordin, Joe Scully; Design de produção: John DeCuir;
Direcção artística: Herman A. Blumenthal, Jack Martin Smith; Decoração: Raphael
Bretton, George James Hopkins, Walter M. Scott; Guarda-roupa: Irene Sharaff;
Maquilhagem: Edwin Butterworth, Dick Hamilton, Edith Lindon, Daniel C.
Striepeke, Verne Langdon, Sharleen Rassi; Direcção de produção: Francisco Day,
George E. Swink; Assistentes de realização: Paul Helmick, Robert J. Koster,
Richard Lang; Departamento de arte: Lloyd R. Apperson, Craig Binkley, Greg C.
Jensen; Som: James Corcoran, Jack Solomon, Murray Spivack, Vinton Vernon,
Douglas O. Williams, Terrance Emerson; Efeitos especiais: Johnny Borgese; Efeitos
visuais: L.B. Abbott, Art Cruickshank, Emil Kosa Jr.; Companhias de produção:
Chenault Productions, Twentieth Century Fox Film Corporation; Intérpretes: Barbara Streisand (Dolly
Levi), Walter Matthau (Horace Vandergelder), Michael Crawford (Cornelius Hackl),
Marianne McAndrew (Irene Molloy), Danny Lockin (Barnaby Tucker), E.J. Peaker
(Minnie Fay), Joyce Ames (Ermengarde), Tommy Tune (Ambrose Kemper), Judy Knaiz
(Gussie Granger), Louis Armstrong, David Hurst, Fritz Feld, Richard Collier, J.
Pat O'Malley, David Ahdar, Will Ahern, Melanie Alexander, Ben Archibek, John
Arnold, Roger Arroyo, Robert Bakanic, etc. Duração: 146 minutos;
Classificação etária: M/ 6 anos; Distribuição em Portugal (DVD): Twentieth
Century Fox; Data de estreia em Portugal: 16 de Dezembro de 1969.
BARBRA
STREISAND (1942 - )
Ela não é apenas
uma actriz conceituada, uma cantora de sucesso, mas igualmente uma produtora
que sabe conduzir os negócios e uma realizadora que consegue transformar em
êxitos os títulos que assina. É uma entertainer completa, canta, dança,
representa, sabe lançar uma graça quando é necessário e justificar uma lágrima.
Para ela, o espectáculo não tem segredos, como soe dizer-se. Barbra Joan
Streisand nasceu a 24 de Abril de 1942, em Williamsburg, Brooklyn, Nova Iorque,
EUA. Os pais foram Diana, uma cantora que se tornou secretária de escola, e
Emanuel Streisand, descendente de judeus polacos, professor do ensino
secundário. Ela estudou na Beis Yakov Jewish School em Brooklyn. Cresceu a
sonhar ser actriz. Conseguiu-o e de que maneira. Começou a carreira como
cantora de um nightclub off-Broadway em Nova Iorque, e estreou-se no teatro
musical da Broadway em 1962, em "I Can Get It For You Wholesale",
logrando logo uma nomeação para o Tony Award para Best Supporting Actress: No
ano seguinte, o sucesso continuou com o primeiro álbum lançado pela Columbia
Records, "The Barbara Streisand Album", que ganhou vários Grammy,
incluindo "Best Album of the Year".
Ainda na Broadway,
em 1964, volta a ver explodir o seu talento na composição de Fanny Brice em
"Funny Girl". Quando chegou ao cinema, era uma vedeta e sua versão de
“Funny Girl: Uma Rapariga Endiabrada (1968), dirigida pelo mestre William
Wyler, transformou-a numa "superstar', a que se seguem outros triunfos
como “Hello Dolly” (1969),“Melinda” (1970), “O Mocho e a Gatinha” (1970) ou
“Que Se Passa Doutor?” (1972). Aparece no melodrama sentimental “O Nosso Amor
de Ontem” (1973), de Sydney Pollack ao lado de Robert Redford, onde muitos
críticos consideram que deu a sua melhor interpretação de sempre. A canção
"The Way We Were" escrita para esse filme e cantada por ela tornou-se
um tema memorável.
Não satisfeita com
o seu trabalho como actriz, e produtora, lançou-se igualmente na realização.
“Yentl” (1983), que recebeu várias nomeações para os Oscars, ganhando dois. Mas
Barbra ficou sem nenhuma estatueta, o que provocou a ira dos admiradores.
Voltaria com “O Príncipe das Marés” (1991), novas sete nomeações, mas a
recompensa como Melhor Realização seria dada pela Directors Guild of America. A
sua terceira realização seria “As Duas Faces do Espelho” (1996), um novo
melodrama que voltou a emocionar as plateias. Casada com Elliott Gould (1963 -
1971), de quem tem um filho, Jason Gould, e com James Brolin (1998 - presente).
Pelo meio, alguns romances que fizeram a ligação entre os dois casamentos.
Democrata, não enjeita acções de cariz social e político. Foi uma apoiante de
Al Gore à presidência dos EUA. É a única personalidade mundial, no universo do
showbusiness que recebeu Oscar, Tony, Emmy, Grammy, Golden Globe, Cable Ace,
National Endowment for the Arts, e prémio Peabody, além do American Film
Institutes Lifetime Achievement Honor e o Chaplin Award, do Film Society of
Lincoln Center.
Filmografia
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