domingo, 1 de maio de 2016

SESSÃO 19: 23 DE MAIO DE 2016


A DAMA DE XANGAI (1948)

Depois de “O Mundo a Seus Pés” e “O 4º Mandamento”, que muitos consideram os títulos mais pessoais de Orson Welles, outra das suas obras mais significativas é “A Dama de Xangai”, rodada em 1948 para a Columbia Pictures. Diz a lenda, e as informações do próprio Welles, que este policial, retirado de um romance menor de Sherwood King ("If I Die Before I Wake"), se concretizou porque o cineasta precisava de 25.000 dólares para ajudar a montar um espectáculo musical na Broadway, "A Volta ao Mundo em 80 Dias", e os conseguiu parcialmente. Como o espectáculo não se chegou a estrear, Welles perdeu essa soma e ficou em dívida para com o produtor Harry Cohn, o homem forte da Columbia. Para pagar a dívida, aceitou adaptar esta obra que seria interpretada por Rita Hayworth, vedeta número um da Columbia e, nessa altura, ainda mulher de Orson Welles, apesar de, por esses dias, correr já o processo de divórcio.
História, portanto, complexa a da génese deste filme, mais uma obra maldita no percurso de um cineasta genial, que considera só ter completado três ou quatro filmes - todos os outros acabaram adulterados por produtores que o não compreendiam e não toleravam com bons olhos as suas experiências estilísticas e a morosidade da montagem. Diga-se, em boa verdade, que não devia ser fácil trabalhar com Welles. Ele próprio o confessa, quando afirma em várias entrevistas suas, que para si uma montagem nunca está terminada. De uma maneira ou de outra, “The Lady from Shanghai” foi mais um filme que se estreou depois de ter sofrido uma montagem imposta pelo produtor, e sobretudo depois de lhe terem colado uma banda sonora “estranha” - que não é a original, portanto - e que exasperava particularmente o realizador, que a considerava música para aventuras de Pluto ou filmes da casa Disney.
Mas vamos ao início da história. Os tumultuosos amores de Welles e Rita Hayworth atravessavam um mau momento, com processo em tribunal e tudo. Mas, a actriz amava ainda Welles e este nunca deixou de se sentir apaixonado por ela. A frase final desta obra dir-se-ia que se adapta por inteiro a este romance mal resolvido. Harry Cohn, o produtor, que durante anos procurou afastar a sua vedeta de estimação das garras desse “intelectual fatídico”, achou nessa altura que seria certamente muito comercial juntar publicamente o casal litigante num policial. E fez tudo para reunir Welles e Rita Hayworth nesta obra. Welles começou por convocar a imprensa e levá-la a assistir a um crime de lesa imagem da diva: perante os fotógrafos, Rita Hayworth aceitou cortar o seu belo cabelo, que surgiria curto e louro em “The Lady from Shanghai”.
Depois, alugou o iate de Errol Flynn, que o pilota por vezes, sem que ele apareça nas imagens, e partiu para os mares do Sul, Acapulco e Sausalito, onde filmou durante várias semanas sem dar novas ao estúdio. Quando chegou a Holywood, com as bobines debaixo do braço, montou o filme e mostrou-o numa ante-estreia para previsão da recepção do público. Os resultados foram catastróficos - ninguém percebera a história, nem o próprio Harry Cohn, que ofereceu um prémio a quem lha contasse direita. Mas Harry Cohn, apesar de tudo, tinha algum respeito por Welles, que lhe pagava na mesma moeda. Welles compreendia o papel dos produtores, mesmo daqueles que não percebiam nada de cinema, como era o declarado caso de Harry Cohn. Já agora, um à parte divertido: conta-se que quando Harry Cohn morreu, o seu enterro foi muito concorrido, o que Billy Wilder explicava, com a ironia que lhe era peculiar: "Acontece, sempre que se dá ao povo aquilo que ele tem vontade de ver..."
Mas no caso de Rita Hayworth, o povo não gostava de a ver transformada e por terra na derradeira sequência. Mulher fatal, sim, mas, mesmo assim, "deusa do amor", mito romântico de uma Hollywood que se afeiçoara à imagem de fábrica de sonhos. Welles, no entanto, filmara a sua amada com verdadeiro amor na objectiva. Basta reter alguns planos admiráveis por onde evolui com a leveza de uma sombra branca e a sensualidade refreada de uma felina pronta a atacar.
A história é realmente um pouco complexa, mas não é nela que se encontra o verdadeiro interesse e significado do filme. A Orson Welles, vindo da traumatizante experiência de “It's All True”, obra abortada entre o México e o Brasil, interessavam sobretudo as personagens que se confrontam, o clima que se cria, as inovações técnicas e narrativas que ia introduzindo no cinema. Esta história de tubarões que se entredevoram quando o cheiro do sangue encharca as águas do oceano era uma história que tinha muito a ver consigo. Ele próprio lhe introduz anotações obviamente pessoais, como a referência a Fortaleza, e a própria metáfora dos tubarões.
Resumindo e concluindo, que quando se começa a falar de Orson Welles a tendência é para não parar mais, “A Dama de Xangai" acaba por ser um dos mais sentidos e sinceros filmes de Welles, uma das obras onde põe mais de si próprio, onde algumas das suas obsessões mais constantes, como os temas da culpabilidade e da falsidade, melhor encontram ressonância e explanação.
Um filme com imagens absorventes de criatividade, de vigor, de brilho, uma das mais fulgurantes aventuras do cinema que se queria moderno e inventivo. Apaixonado pela estética da distanciação de Bertolt Brecht, que considerava o teatro chinês aquele que melhor concretizava essa intenção, não será de estranhar que as derradeiras sequências desta obra decorram precisamente durante uma representação de teatro chinês - será aí que se descobrirá o verdadeiro culpado, culpado que será justiçado numa admirável sequência de espelhos múltiplos, onde a realidade se deforma, multiplica e estilhaça.  

A DAMA DE XANGAI
Título original: The Lady from Shanghai
Realização: Orson Welles  (EUA); Argumento: Orson Welles, William Castle, Charles Lederer  e Fletcher Markle (os três últimos não creditados), segundo romance de Sherwood King  (If I Die Before I Wake); Música Original: Heinz Roemheld  e ainda Doris Fisher e Allan Roberts  (canção "Please Don't Kiss Me") (não creditados); Fotografia (P/b): Charles Lawton Jr., Rudolph Maté   (não creditado), Joseph Walker (não creditado); Montagem: Viola Lawrence; Direcção artística: Sturges Carne, Stephen Goosson; Decoração: Wilbur Menefee, Herman N. Schoenbrun; Guarda Roupa: Jean Louis; Maquilhagem: Clay Campbell, Helen Hunt, Robert J. Schiffer; Assistentes de realização: Sam Nelson; Realizador da Segunda unidade: William Castle; Som: Lodge Cunningham; Efeitos Especiais: Lawrence W. Butler; Produção: William Castle, Harry Cohn, Orson Welles, Richard Wilson; Intérpretes: Rita Hayworth (Elsa "Rosalie" Bannister), Orson Welles (Michael O'Hara), Everett Sloane (Arthur Bannister), Glenn Anders (George Grisby), Ted de Corsia (Sidney Broome), Erskine Sanford (Juiz), Gus Schilling (Goldie), Carl Frank (Procurador Público, Galloway), Louis Merrill (Jake), Evelyn Ellis (Bessie), Harry Shannon (Taxista), William Alland, Jessie Arnold, Jack Baxley, Steve Benton, Vernon Cansino, Doris Chan, George Chirello, Wong Show Chong, Edward Coke, Peter Cusanelli, Al Eben, Edythe Elliott, John Elliott, Keenan Elliott, Joseph Granby, Robert Gray, Alvin Hammer, Maynard Holmes, Tiny Jones, Byron Kane, Milton Kibbee, Preston Lee, Grace Lem, Billy Louie, Charles Meakin, Philip Morris, Sam Nelson, Mary Newton, Joseph Palmer, Edward Peil Sr., Gerald Pierce, Joe Recht, Mabel Smaney, Harry Strang, Norman Thomson, Philip Van Zandt, Dorothy Vaughan, Richard Wilson, Artarne Wong, Jean Wong, etc. Rodagem: nos Estúdios da Columbia e exteriores no México, San Francisco, a bordo de "Zacca", o iate de Errol Flynn; Duração: 87 minutos; Estreia: Abril de 1948 em Inglaterra e Maio de 1948 nos EUA;;  Distribuição Internacional: Columbia Pictures; Distribuição em Portugal: Radio Filmes (Portugal);Edição vídeo: Costa do Castelo.


RITA HAYWORTH (1918 - 1987)
Rita Hayworth, de nome de baptismo Margarita Carmen Cansino, nasceu em Brooklyn, Nova Iorque, a 17 de Outubro de 1918 e faleceu na mesma cidade, a 14 de Maio de 1987. De ascendência hispano-irlandesa, era filha do dançarino de flamengo Eduardo Cansino, natural de Castilleja de la Cuesta, e de Volga Hayworth, chefes de uma famosa família de dançarinos ciganos espanhóis. O avô, Antonio Cansino, era o maior expoente de Dança Clássica Espanhola, com uma escola de dança em Madrid que era mundialmente famosa. Aos três anos e meio, Margarita Cansino começou a ter aulas de dança, de que não gostava muito. Frequentou igualmente aulas de dança no Carnegie Hall, sob a instrução de seu tio Angel Cansino. Aos oito anos a família mudou-se para Hollywood, onde criaram a sua própria escola de dança. Começou a dançar integrada nos "The Dancing Cansinos", ainda sem idade para actuar na Califórnia, lança-se na cidade de Tijuana, actuando no “Foreign Club” e no “Caliente Club”, onde viria a ser descoberta, em 1935, pelo director da Fox Film, Winfield Sheehan. Nesta produtora, fez um teste e foi contratada por seis meses, sob o nome de Rita Cansino. Apareceu em pequenos papéis, em cinco filmes, mas o produtor executivo da Fox, Darryl F. Zanuck desinteressou-se dela e não renovou o contrato. Em 1937, com 18 anos, casou-se com seu empresário, Edward Judson, que lhe conseguiu alguns trabalhos em filmes independentes e posteriormente na Columbia Pictures, onde Harry Cohn assinou um contrato de longa duração. Começou a interpretar pequenos papéis e passou então a chamar-se Rita Hayworth, adoptando o nome de solteira da mãe. Depois de uns tempos hesitantes, em 1939, Howard Hawks dirige-a em “Only Angels Have Wings”, ao lado de Cary Grant e Jean Arthur, e ascendeu ao estrelato rapidamente, sobretudo depois de aparecer em “Susan and God” (1940), de George Cukor, e em “Blood and Sand” (1941), de Rouben Mamoulian. Com “Gilda”, de 1964, dirigido por Charles Vidor, atinge a maior celebridade. Casada com Orson Welles, em 1943, este dirige-a em “The Lady from Shanghai” (1948), que causou polémica, pois o realizador obrigou-a a cortar o cabelo e a pintá-lo de louro. Teve ainda alguns outros sucessos, como “Pal Joey” (1957), de George Sidney, ao lado de Frank Sinatra e Kim Novak. Continuou a trabalhar até inícios dos anos 70, já muito abalada pela doença de Alzheimer, que só viria a ser diagnostica em 1980. Para lá de Edward C. Judson (1937- 1942) e Orson Welles (1943-1948), foi casada ainda com o príncipe Aly Khan (1949-1953), o cantor Dick Haymes (1953-1955) e, finalmente, com o produtor James Hill (1958-1961). Morreu em casa da filha Yasmin, em Nova Iorque, e está sepultada no Cemitério de Holy Cross, em Culver City, na Califórnia, EUA. Foi uma das maiores star de Hollywood e um sex symbol que não se limitava a exibir o seu físico esplendoroso: era uma actriz completa, talentosa e sedutora.


Filmografia:
A) Como figurante ou como Rita Cansino: 1926: La Fiesta (curta-metragem); 1934: Cruz Diablo ou The Devil's Cross, de Fernando de Fuentes; 1935: Paddy O'Day (A Pequena Irlandesa), de Lewis Seiler; In Caliente (Sangue Ardente), de Lloyd Bacon; Under the Pampas Moon (Amor de Gaúcho), de James Tinling; Dante's Inferno (O Inferno de Dante), de Harry Lachman; Charlie Chan in Egypt (Charlie Chan no Egipto), de Louis King; Piernas de seda, de John Boland, Enrique de Rosas e Miguel de Zárraga; Hi, Gaucho!, de Thomas Atkins; Professional Soldier (Soldado Profissional), de Tay Garnett;1936: Meet Nero Wolfe (O Mistério Desvendado), de Herbert J. Biberman; Dancing Pirate (O Pirata Bailarino), de Lloyd Corrigan; Human Cargo (Repórteres Rivais), de Allan Dwan; Rebellion, de Lynn Shores; 1937: Hit the Saddle (Os Três Mosqueteiros do Oeste), de Mack V. Wright; Old Louisiana, de Irvin Willat; Life Begins with Love (Milionário a Dias), de Ray McCarey; Trouble in Texas (O Herói do Texas), de Robert N. Bradbury;
B) Como Rita Hayworth: 1937: Criminal of the Air (Contrabandistas do Ar), de Charles C. Coleman; Girls Can Play, de Lambert Hillyer; Paid to Dance (Paga para Dançar), de Charles C. Coleman; The Game That Kills (O Jogo que Mata), de Ross Lederman; The Shadow (A Sombra Negra), de Charles C. Coleman; 1938: Who Killed Gail Preston?, de Leon Barsha; The Renegade Ranger, de David Howard; Juvenile Court (Mocidade em Perigo), de D. Ross Lederman; Convicted, de Leon Barsha; There's Always a Woman (És uma Doida!...), de Alexander Hall; 1939: Special Inspector, de Leon Barsha; Homicide Bureau (Investigação Criminal), de Charles C. Coleman; The Lone Wolf Spy Hunt (Ladrão Dentro da Lei), de Peter Godfrey; Only Angels Have Wings (Paraíso Infernal), de Howard Hawks; 1940: Susan and God (As Teorias de Susana), de George Cukor; Blondie on a Budget (Os Ciúmes de Blondie), de Frank R. Strayer; Music in My Heart (Mais Forte que a Lei), de Joseph Santley; The Lady in Question (Acusada. Levante-; e!), de Charles Vidor; Angels over Broadway (Salvo da Morte), de Lee Garmes e Ben Hecht; 1941: Blood and Sand (Sangue e Arena), de Rouben Mamoulian; 1941: You’ll Never Get Rich (Nunca serás Rico), de Sidney Lanfield; The Strawberry Blonde (Uma Loira com Açucar), de Raoul Walsh; Affectionately Yours (Volta para Mim), de Lloyd Bacon; 1942: You Were Never Lovelier (Nunca Estiveste tão Linda), de William A. Seiter; My Gal Sal (Namorada), de Irving Cummings; Tales of Manhattan (Seis Destinos), de Julien Duvivier; 1944: Cover Girl (Modelos), de Charles Vidor; 1946: Gilda (Gilda), de Charles Vidor; Tonight and Every Night (Esta Noite e Sempre), de Victor Saville; 1947: Down to Earth (A Deusa Desceu à Terra), de Alexander Hall; 1948: The Loves of Carmen (Amores de Carmen), de Charles Vidor; The Lady From Shanghai (A Dama de Xangai), de Orson Welles; 1952: Affair in Trinidad (Calypso, a Feiticeira da Ilha), de Vincent Sherman; 1953: Miss Sadie Thompson (Chuva), de Curtis Bernhardt; Salomé (Salomé), de William Dieterle; 1957: Pal Joey (O Querido Joey), de George Sidney; Fire Down Below (Fogo dos Tropicos), de Robert Parrish; 1958: Separate Tables (Vidas Separadas), de Delbert Mann; 1959: They Came to Cordura (Os Heróis de Cordura), de Robert Rossen; 1959: The Story On Page One (Drama na Primeira Página), de Clifford Odets; 1962: The Happy Thieves (Os Alegres Ladrões), de George Marshall; 1964: Circus World (O Mundo do Circo), de Henry Hathaway; 1965: The Money Trap (A Tentação do Dinheiro, de Burt Kennedy; 1966: The Poppy is also a Flower (A Papoila também é uma Flor), de Terence Young; 1967: L'Avventuriero (O Marinheiro), de Terence Young; 1968: I bastardi (O Bastardo), de Duccio Tessari; 1971: The Naked Zoo, de William Grefe; 1971: Sur la Route de Salina, de Georges Lautner; 1972: The Wrath of God (A Cólera de Deus), de Ralph Nelson.


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