domingo, 9 de outubro de 2016

SESSÃO 39: 17 DE OUTUBRO DE 2016


DR. JIVAGO (1965)

“Dr. Jivago”, de David Lean parte do romance homónimo de Boris Pasternak, prémio Nobel de Literatura de 1958. A obra provocou uma enorme polémica internacional ao ser lançada no Ocidente e terá interesse recordar um pouco este historial. Pasternak iniciou a escrita deste épico na década de 10 do século XX, mas só estaria acabado em 1956. Nesse ano, submetido à consideração da revista literária “Novy Mir” viu recusada a sua publicação, pois não se incluía nos cânones do então chamado “realismo socialista” e era vista objectivamente como uma crítica ao sistema soviético. Pasternak enviou várias cópias do manuscrito em russo para amigos que viviam no ocidente e, em 1957, o editor italiano Giangiacomo Feltrinelli, comunista, conseguiu ter acesso ao romance e publicou-o. A União dos Escritores Soviéticos fez tudo para impedir a publicação da tradução, mas ela fez-se em 1957 e Feltrinelli foi expulso do PCI. Entretanto, o sucesso do livro foi imediato, com traduções em todas as línguas e edições clandestinas em russo. Depois, foi a consagração do Nobel, que causaria outras polémicas com alguns a considerar que tinha sido a CIA a incentivar a atribuição do prémio para criar embaraços ao governo soviético. Em 23 de Outubro de 1958, foi anunciado que Boris Pasternak ganhara o Prémio Nobel de Literatura de 1958, em função da sua “contribuição para a poesia lírica russa” e pelo seu papel "em prosseguimento da grande tradição da épica russa". Pasternak, por telegrama, agradece à Academia Sueca, “Infinitamente grato, emocionado, orgulhoso, surpreendido, esmagado”. Mas o escândalo e as ameaças na URSS levam o escritor a escrever de novo à Academia: “Tendo em conta o significado dado ao prémio pela sociedade em que vivo, tenho de renunciar a essa distinção imerecida, que me foi conferida. Por favor, não considerem a despropósito a minha renúncia voluntária”. E assim Pasternak não recebeu o Nobel, que só muitas anos depois (1989), um filho receberia, em nome do pai. O escritor, que recusou exilar-se no Ocidente, morreu na URSS, na noite de 30 de maio de 1960, vítima de cancro nos pulmões. 


A adaptação do romance a cinema não mobiliza divergências de monta, ainda que muito se tenha alterado, em função, essencialmente, de condensar as muitas centenas de páginas da obra literária nas três horas de projecção do filme. Mas ao essencial a adaptação mostra-se fiel. Numa época de profundas transformações sociais na Rússia, que se estende desde a I Guerra Mundial, passando pela Revolução Bolchevique de 1917, até finais da Guerra Civil, vamos acompanhar o percurso de uma personagem, Yuri (Omar Sharif), médico e poeta, em confronto com as alterações sociais e políticas por que passa o seu país. Yuri não é um potencial revolucionário, mas compreende que a Rússia czarista tem de mudar. A prepotência e a corrupção assentaram arraiais na sociedade e isso justifica de alguma maneira o levantamento popular e a implementação do comunismo. De início, até poderá sentir certa simpatia pelos revolucionários, mas progressivamente vai compreendendo que as transformações ocorreram apenas para se substituir uma burguesia corrupta e violenta na defesa dos seus interesses, por um aparelho corrupto e violento na defesa dos seus novos interesses. O povo nada beneficiou com a troca, as dificuldades são as mesmas, se não pioraram. Integrando-se neste quadro histórico que David Lean traça com pinceladas largas, surge Yuri, lamentando de início a morte da mãe, e oscilando depois no seu amor entre a mulher, Tonya (Geraldine Chaplin) e a amante, Lara (Julie Christie), a generosa cumplicidade da companheira, e a impulsividade criativa da paixão. Mas o que interessa sobretudo a Pasternak, e posteriormente a David Lean, é o entrecruzar de destinos, o choque entre o movimento colectivo e a deambulação individual. Entre a Revolução e a introspecção. Ou entre um equilíbrio que deverá sempre existir entre o nós e o eu, e a perversão que se verifica quando um dos lados se emancipa ditatorialmente. Daí a crítica que o romance e o filme comportam a um sistema que foi derrapando rapidamente das boas intenções iniciais para a tirania férrea dos tempos de Estaline.


Se Yuri é um poeta, David Lean procura prolongar esse estado poético ao longo do filme, criando uma atmosfera que liga admiravelmente o individual e o colectivo, o homem e a natureza, os estados amorosos e o destempero da violência. Esta foi uma obra que obteve um grande sucesso comercial e arrecadou cinco Oscares. As estatuetas foram para o Melhor Argumento Adaptado (Robert Bolt),  A Melhor Fotografia a Cores (Freddie Young), a Melhor Direcção Artística a Cores (John Box, Terence Marsh e Dario Simoni), o Melhor Guarda-roupa (Phyllis Dalton), e Melhor Partitura Musical Original (Maurice Jarre). Ainda esteve nomeado para Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor Secundário (Tom Courtenay), Melhor Som e Melhor Montagem. Um dos grandes trunfos terá sido indiscutivelmente o “tema de Lara”, uma composição musical romântica que tornou inesquecível este filme, uma superprodução com momentos fulgurantes e uma descrição cuidada de uma época de difícil reconstituição. O gosto pela vastidão da paisagem (aqui a paisagem gelada do Norte, como fora em Lawrence da Arábia”, o deserto, ou, em "Passagem Para a India”, os exteriores deslumbrantes do Oriente misterioso), a discrição no esboçar dos conflitos humanos e no despoletar das paixões, o equilíbrio encontrado entre a história individual e o drama colectivo, tudo isto faz de «Dr. Jivago” um belíssimo filme. A interpretação é quase sempre brilhante, quanto a mim com o senão de Omar Shariff que não está à altura da personagem. Mas David Lean mostra-se num glorioso momento de forma, ele que era uma referência imediata para cineastas como Stanley Kubrick, que o considerava um dos três únicos realizadores mundiais a que tinha de assistir a todos os filmes, ou Steven Spielberg, que quando parte para mais uma rodagem afirma rever com prazer e proveito alguns clássicos do grande mestre Lean.

DOUTOR JIVAGO
Título original: Doctor Zhivago
Realização: David Lean (Inglaterra, EUA, Itália, 1965); Argumento: Robert Bolt, segundo romance de Boris Pasternak; Produção: Arvid Griffen, Carlo Ponti; Música: Maurice Jarre; Fotografia (cor): Freddie Young; Montagem: Norman Savage; Casting: Irene Howard; Design de produção: John Box; Direcção artística: Terence Marsh; Decoração: Dario Simoni; Guarda-roupa: Phyllis Dalton; Maquilhagem: Anna Cristofani, Grazia De Rossi, Mario Van Riel; Direcção de Produção: John Palmer, Agustín Pastor, Douglas Twiddy, Stanley Goldsmith, Tadeo Villalba; Assistentes de realização: Roy Rossotti, Roy Stevens, Pedro Vidal, Peter Beale, José María Ochoa, Michael Stevenson; Departamento de arte: Fred Bennett, Gus Walker, Tom Jung, Mickey Lennon, Julián Martín, Gil Parrondo, Wallis Smith; Som: Paddy Cunningham, Winston Ryder, Van Allen James; Efeitos especiais: Eddie Fowlie; Efeitos visuais: Gerald Larn; Companhias de produção: Metro-Goldwyn-Mayer (MGM), Carlo Ponti Production, Sostar S.A.; Intérpretes: Omar Sharif (Yuri), Julie Christie (Lara), Geraldine Chaplin (Tonya), Rod Steiger (Komarovsky), Alec Guinness (Yevgraf), Tom Courtenay (Pasha), Siobhan McKenna (Anna), Ralph Richardson (Alexander), Rita Tushingham (a rapariga), Jeffrey Rockland (Sasha), Tarek Sharif (Yuri aos 8 anos), Bernard Kay (o bolchevique), Klaus Kinski (Kostoyed), Gérard Tichy (Liberius), Noel Willman, Geoffrey Keen, Adrienne Corri, Jack MacGowran, Mark Eden, Erik Chitty, Roger Maxwell, Wolf Frees, Gwen Nelson, Lucy Westmore, Lili Muráti, Peter Madden, Luana Alcañiz, Assad Bahador, José María Caffarel, Emilio Carrer, Catherine Ellison, Pilar Gómez Ferrer, Víctor Israel, Inigo Jackson, Gerhard Jersch, Jari Jolkkonen, Leo Lähteenmäki, María Martín, José Nieto, Ricardo Palacios, Ingrid Pitt, Robert Rietty, Mercedes Ruiz, Aldo Sambrell, Virgilio Teixeira (capitão), Brigitte Trace, María Vico, etc. Duração: 186 minutos; Distribuição em Portugal: Warner (DVD); Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 20 de Setembro de 1966.


JULIE CHRISTIE (1941 - )
Há actrizes e actores que ficam marcados por um papel, uma personagem. Julie Christie não terá ficado para sempre associada à figura de Lara no “Doutor Jivago”, mas andou muito perto. No entanto, o seu talento e a sua fotogenia dispersaram-se por muitas outras obras, inglesas e internacionais.
Julie Frances Christie nasceu a 14 de Abril de 1941, em Chabua, na Índia britânica. Filha de uma pintora, Rosemary, e Francis "Frank" St. John Christie, que detinha uma plantação de chá. Com o divórcio dos pais, viveu com a mãe na zona rural do País de Gales. Estudou na escola do Convento de Our Lady, em Leonards-on-Sea, East Sussex, na Wycombe Court School, High Wycombe, Buckinghamshire, também na Central School of Speech and Drama. Em 1957, estreia-se na televisão e esteve para figurar no elenco do primeiro James Bond, mas os seus seios foram considerados pelos produtores pouco abonados. O primeiro grande papel da sua carreira é em “Billy Liar”, de John Schlesinger (1963). Aparece então associada ao movimento do “Free Cinema”. Dois anos depois, triunfa em toda a linha com “Darling”, do mesmo Schlesinger, onde ganha o Oscar de Melhor Actriz. No mesmo ano, brilha sob a direcção de David Lean, em “Doctor Zhivago”. A sua carreira a partir daí é um pouco irregular, mas vai aparecendo sempre em obras relevantes onde demonstra o seu inegável talento, que lhe valeu inúmeros prémios. Manteve uma relação com Warren Beatty, tendo actuado em filmes por ele dirigidos, como Shampoo (1975) e Heaven Can Wait (1978). Mas a sua carreira está recheada de obras indispensáveis como “Fahrenheit 451” (1966), “Far from the Madding Crowd” (1967), “Petulia” (1968),  “McCabe & Mrs. Miller” (1971), “The Go-Between” (1971), “Don't Look Now” (1973), “Demon Seed” (1977), “The Return of the Soldier” (1982), “Heat and Dust” (1983), “ Power” (1986), “Afterglow” (1997) ou  “Away from Her” (2008).
Foi nomeada quatro vezes para o Oscar de Melhor Actriz, ganhando em 1966, com “Darling”. Nomeada ainda em 1972 (“McCabe and Mrs. Miller”), 1998 (“Afterglow”) e 2008 (“Away from Her”). Foi Globo de Ouro, em 2008, com “Away from Her”, e contou com várias outras nomeações. O mesmo filme valeu-lhe os prémios da Screen Actors Guild e da National Board of Review, que antes já a havia consagrado em 1965, por “Darling” e “Doctor Zhivago”. “Afterglow”, em 1998, valeu-lhe ainda o Independent Spirit Award. Presença regular nos BAFTAS (em 1964, 67, 73, 74), ganhou em 1966, com “Darling”.
Outros relacionamentos célebres foram com Terence Stamp e Donald Sutherland, mas o mais duradouro foi com Duncan Campbell, um jornalista do “The Guardian”, que data dos anos 70 e acabou em casamento em 2007. Julie Christie, feminista, é igualmente activa defensora do ambiente e dos animais, lutando contra armas nucleares, e defendendo a causa da Palestina.


Filmografia

Como actriz: 1961: A for Andromeda (TV); Call Oxbridge 2000 (TV); 1962: The Fast Lady (A Respeitável Carcaça), de Ken Annakin; The Andromeda Breakthrough (TV); 1962: Crooks Anonymous (Agarra que é Ladrão!), de Ken Annakin; 1963: Billy Liar (O Jovem Mentiroso), de John Schlesinger; O Santo (TV); ITV Play of the Week (TV); 1965: Doctor Zhivago (Doutor Jivago), de David Lean; Darling (Darling), de John Schlesinger; Young Cassidy (O Jovem Cassidy), de John Ford; 1966: Fahrenheit 451 (Grau de Destruição), de François Truffaut; 1967: Far from the Madding Crowd (Longe da Multidão), de John Schlesinger; 1968: Petulia (Petulia), de Richard Lester; 1970: The Go-Between (O Mensageiro), de Joseph Losey; In Search of Gregory (Convite ao Pecado), de Peter Wood; 1971: McCabe & Mrs. Miller (A Noite Fez-se Para Amar), de Robert Altman; 1973: Don't Look Now (Aquele Inverno em Veneza), de Nicolas Roeg; 1975: Shampoo (Shampoo), de Hal Ashby; 1977: Demon Seed (A Semente do Demónio), de Donald Cammell; 1978: Heaven can Wait (O Céu Pode Esperar), de Warren Beatty; 1981: Memoirs of a Survivor (Memórias de Uma Sobrevivente), de David Gladwell; 1982: Les Quarantièmes Rugissants, de Christian de Chalonge; The Return of the Soldier (O Regresso do Soldado), de Alan Bridges; 1983: Heat and Dust (Verão Indiano), de James Ivory; Separate Tables (TV); The Gold Diggers, de Sally Potter; 1986: Miss Mary, de María Luisa Bemberg; 1986: Power (As Chaves do Poder), de Sidney Lumet; 1986: Väter und Söhne - Eine deutsche Tragödie (TV); 1986: Champagne Amer, de Ridha Behi, Henri Vart; 1988: Dadah Is Death (TV); 1990: Fools of Fortune (Anos de Fogo), de Pat O’ Connor; 1992: The Railway Station Man (TV); 1996: Dragonheart (DragonHeart: Coração de Dragão), de Rob Cohen; 1996: Hamlet (Hamlet), de Kenneth Branagh; 1996 Karaoke (TV); 1997: Afterglow (Sol do Poente), de Alan Rudolph; 2000: The Miracle Maker – The Story of Jesus; 2001: Belphégor, le Fantôme du Louvre, de Jean-Paul Salomé; 2001: No Such Thing, de Hal Hartley; 2002: Snapshots, de Rudolf van den Berg; I’m with Lucy, de Jon Sherman; 2004: Troy (Tróia), de Wolfgang Petersen; Harry Potter and the Prisoner of Azkaban (Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban), de Alfonso Cuarón; Finding Neverland (À Procura da Terra do Nunca), de Marc Forster; 2005: The Secret Life of Words (A Vida Secreta das Palavras), de Isabel Coixet; 2006: Away from Her (Longe Dela), de Sarah Polley; 2009: Glorious 39 (Os Gloriosos 39), de Stephen Poliakoff; 2009: New York, I Love You (episódio de Shekhar Kapur); 2011: Red Riding Hood (A Rapariga do Capuz Vermelho), de Catherine Hardwicke; 2012: The Company You Keep (Regra de Silêncio), de Robert Redford.

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