LADRÃO DE CASACA
(1955)
Na filmografia de Alfred Hitchcock, “To Catch a
Thief” funciona quase como um divertimento. Não tem a densidade dramática, nem
a intensidade de suspense, nem a profundidade de análise psicológica das obras
maiores do mestre, mas aproxima-se muito do que era para si o cinema, um
entretenimento de massas. “Não faço filmes para a crítica, não faço filmes para
os produtores, faço filmes para distrair o público”. “Ladrão de Casaca” é uma
excelente distracção, e não deve ter sido (e continua a não ser) só para os
espectadores, mas também para quem o rodou em exteriores na Riviera Francesa,
entre Cannes e Mónaco. Todo o filme reflecte o ambiente de uma contagiante boa
disposição, de descontracção, de alegria a que a paisagem e o clima
predispunham.
O argumento de John Michael Hayes e Alec Coppel
(este não creditado) parte de um romance de David Dodge, que, de certa forma,
consciente ou inconscientemente, parece prolongar as aventuras de Arsène Lupin,
o sedutor ladrão de jóias que o popular escritor francês Maurice Leblanc
imortalizou. Neste caso temos "Robie The Cat" (Cary Grant), outrora
célebre ladrão de alta sociedade, agora confessadamente retirado das lides, mas
que é obrigado a voltar a trepar aos telhados da Riviera Francesa, desta feita
não para penetrar nos hotéis e nos palacetes mais cobiçados pelo seu recheio,
mas para tentar surpreender alguém que lhe anda a usurpar os métodos, a
indumentária, o objecto dos seus roubos. Claro que a polícia se coloca no seu
encalço o que é mais uma razão para o elegante Robie trepar pelas paredes para
não ir parar aos calabouços. Entre as muitas possíveis vítimas encontra-se Frances (Grace Kelly), a belíssima americana em
viagem de turismo, acompanhada pela mãe, que sente uma profunda atracção por
este gatuno de luvas brancas (por acaso são pretas) cuja vida aventurosa a seduz.
Mais uma vez temos alguns temas constantes da
filmografia de Hitch, entre eles o falso culpado que tenta defender-se e a bela
loura que protagoniza tantas das suas obras, desde Kim Novak, Tippi Hedren, Eva Marie Saint, Janet Leigh, Doris
Day, até Ingrid Bergman ou a sua musa de eleição, Grace Kelly, que é não só a
interprete de “To Catch a Thief”, como ainda de “Chamada para a Morte” e de
“Janela Indiscreta”, que havia sido produzido um ano antes (1954) e que se
transformara num dos maiores sucessos da carreira do cineasta, e que se
prolonga até hoje. “Ladrão de Casaca” tenta reproduzir o êxito anterior, para
tanto mantendo muitos dos colaboradores (desde o argumentista John Michael
Hayes que assinara o guião de “Rear Window”, até Robert Burks, o director de
fotografia, George Tomasini, o montador, J. McMillan Johnson e Hal Pereira, na
direcção artística, Edith Head, no guarda-roupa…) e mantendo um par romântico
em que a loura de aparência cândida, mas de comportamento frio e esquivo, era a
mesma Grace Kelly, trocando apenas James Stewart por Cary Grant, que mantinham
entre si, todavia, características muito semelhantes. O resultado foi
igualmente um sucesso de público, mas a crítica torceu um pouco o nariz a este
devaneio humorístico de Hitchcock, com muito de comédia sentimental e pouco de
suspense de cortar à faca. Sublinhe-se ainda a qualidade dos diálogos, de um
humor cheio de duplos sentidos, de uma ironia fina, por vezes deliciosamente
“incorrectos” no que deixam subentender.
Mas o filme é mais um hino à beleza deslumbrante
daquela que pouco depois seria princesa do Mónaco (e que iria morrer num
acidente de viação numa das estradas que ela e Cary Grant percorrem em louca
correria neste “Ladrão de Casaca”, precisamente numa das curvas onde o casal de
actores pára o seu bólide, para um piquenique) e ao seu excelente partenaire,
mas igualmente ao talento de Hitchcock. Por falar nisso, será curioso não
esquecer o que o cineasta confessou a François Truffaut sobre os seus gostos
pelas mulheres que surgem nos seus filmes: “uma mulher não deve parecer vulgar,
nem fazer sobressair os seus encantos a toda a hora. Só as verdadeiras
senhoras, que só são putas no quarto, me interessam”. Na verdade, se
percorrermos a filmografia de Hitch esta realidade é uma constante: mulheres
aparentemente frias, distantes, elegantes, de porte altivo e aristocrático, mas
de forte intensidade erótica e sensual que se pressente para lá das aparências.
O que mantém o tom da obra num clima de constante troca de sedução entre o
retirado ladrão de jóias e a bela milionária que se lhe atravessa no caminho.
Também a paisagem da Côte d’Azur é magnificamente
explorada, numa época em que fazia as delícias das plateias americanas e
internacionais (veja-se a quantidade de filmes ali rodados por esses anos!) e o
desenho das personagens é bem conseguido, furtando-se de alguma forma aos
estereótipos, quando não brinca mesmo com eles. Hitch não deixa de ser um autor
com rasgos de génio (o seu ódio aos ovos fica aqui bem demonstrado com duas
cenas de antologia: a mãe de Frances ao apagar um cigarro na gema de uma ovo
estrelado, ou o ovo que é atirado contra "Robie The Cat" e que se
esborracha no vidro de uma parede). Também a sequência inicial é muito
justamente citada, quando a câmara desce num lento travelling sobre um placard
onde se lê “If you love life, you’ll love France”, a que se segue um grito de
mulher que descobre o roubo das suas preciosas jóias.
Mas deve ainda referir-se de novo a fotografia de
Robert Burks, que ganha o Oscar nesse ano, e que explora devidamente as
potencialidades do VistaVision, um processo lançado pela Paramount para
competir com o Cinemascope da Warner, que estreara não há muito “A Túnica” com
enorme sucesso.
LADRÃO DE CASACA
Título original: To
Catch a Thief
Realização: Alfred Hitchcock (EUA, 1955); Argumento:
John Michael Hayes, Alec Coppel (não creditado), segundo romance de David
Dodge; Produção: Alfred Hitchcock; Música: Lyn Murray; Fotografia (cor): Robert
Burks; Montagem: George Tomasini; Direcção artística: J. McMillan Johnson, Hal
Pereira; Decoração: Sam Comer, Arthur Krams; Guarda-roupa: Edith Head;
Maquilhagem: Wally Westmore; Direcção de Produção: C.O. Erickson; Assistentes
de realização: Herbert Coleman, Daniel McCauley; Departamento de arte: Dorothea
Holt, Joe Keller, Robert McCrillis; Som: John Cope, Harold Lewis; Efeitos
visuais: Farciot Edouart, John P. Fulton; Companhia de produção: Paramount
Pictures; Intérpretes: Cary Grant
(John Robie), Grace Kelly (Frances Stevens), Jessie Royce Landis (Jessie
Stevens), John Williams (H.H. Hughson), Charles Vanel )Bertani), Brigitte Auber
(Danielle Foussard), Jean Martinelli (Foussard), Georgette Anys (Germaine),
George Adrian, John Alderson, Martha Bamattre, René Blancard, Eugene Borden,
Nina Borget, Margaret Brewster, Lewis Charles, Frank Chelland, Wilson Cornell, Reinie Costello, William 'Wee
Willie' Davis, Dominique Davray, Louise De Carlo, Guy De Vestel, Gloria Dee,
Kathleen Desmond, Lala Detolly, Dolores Ellsworth, George Ellsworth, Bess
Flowers, Russell Gaige, Steven Geray, Art Gilmore, Michael Hadlow, Lars Hensen,
Alfred Hitchcock (homem sentado no autocarro, ao lado de John Robie), Gladys
Holland, Jean Hébey, Beverly Ruth Jordan, Lorraine Knight, Bela Kovacs, Jeanne
Lafayette, Donald Lawton, Eddie Le Baron, Roland Lesaffre, Edward Manouk,
Jonathan Marlowe, Jerri McKenna, Don Megowan. Louis Mercier, Alberto Morin,
George Nardelli , Paul Newlan, Barry Norton, George Paris, Manuel París, Joan
Patti, Leonard Penn, Albert Pollet, Loulette Sablon, Cosmo Sardo, Otto F.
Schulze, Lal Singh, Adele St. Mauer, Marie Stoddard, Aimee Torriani, Philip Van
Zandt, Geni Whitlow, Phyllis Young, etc. Duração:
106 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Lusomundo Audiovisuais /
Paramount; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 12 de
Janeiro de 1956.
GRACE KELLY (1929 – 1982)
As aparências iludem, sempre se ouviu
dizer, e por vezes são as falsas aparências que motivam as grandes descobertas.
Uma mulher pode ser uma pedra de gelo por fora e um vulcão por dentro, pode
possuir o comportamento exterior e o estatuto de princesa, mas revelar só aos
muito íntimos a fogosidade da sua paixão. Por isso se compreende que que Grace
Kelly tenha sido a musa de Hitchcock, que gostava de mulheres assim. Mas não
foi só com Hitch que Grace foi princesa antes de o ser. Toda a sua filmografia
evoca essa silhueta de “cisne”, essa posse de “alta sociedade”, essa promessa
de “para sempre”. Como dizem em linguagem popular, Grace era uma senhora que
parecia não partir um prato e que, se calhar, teria partido todo o serviço.
Cremos que essa ambiguidade que se adivinhava terá feito grande parte da sua
sedução.
Grace Patricia Kelly nasceu a 12 de
Novembro de 1929, em Filadélfia, Pensilvânia, EUA, e faleceu a 14 de Setembro
de 1982, no Mónaco, vítima de um acidente de automóvel.
De ascendência irlandesa e alemã, era a
segunda filha de Jack Kelly e Margaret Katherine Maier, o pai campeão olímpico
de remo e a mãe treinadora desportiva. Grace Kelly desde muito nova demonstrou
interesse pelo teatro, tendo actuado, ainda quando criança, em várias peças
escolares. Estudou na Ravenhill Academy e na Stevens School, onde se licenciou,
ambas em Germantown, Pensilvânia. Mudou então para Nova Iorque, para estudar
teatro na Academia Americana de Artes Dramáticas. Tendo na família vários
parentes que gostavam e praticavam artes cénicas, Grace foi por eles
encorajada. Passou a viver no “Barbizon Hotel for Women”, um hotel de prestígio
para mulheres endinheiradas, onde era impedida a entrada de homens depois das
22 horas, e começou a trabalhar como modelo para sustentar os seus estudos. A
sua estreia nos palcos da Broadway foi em “The Father”, de August Strindberg. O
produtor e realizador Delbert Mann, após ver Grace Kelly num dos vários
episódios por si interpretados na TV, convida-a a integrar o elenco da produção
televisiva “Bethel Merriday”, uma adaptação da obra de Sinclair Lewis, e depois
para surgir no filme “Fourteen Hours”, de Henry Hathaway. Foi durante a rodagem
desta obra que Gary Cooper a notou, afirmando que ela era "diferente de
todas as actrizes” que ele via com frequência. Pouco depois, recebia um convite
de Stanley Kramer, que lhe ofereceu o papel principal do filme “High Noon”, de
Fred Zinnemann. O filme trouxe-lhe um contrato de oito anos com a MGM. Em 1953,
foi convidada por John Ford para “Mogambo”, dado que Gene Tierney desistira do
papel. Grace Kelly recebeu um Globo de Ouro na categoria Melhor Actriz
Secundária, e uma nomeação ao Oscar na mesma categoria. Em 1954, Alfred Hitchcock
chama-a para “Dial M for Murder”, a que se seguem “Rear Window” e “To Catch a
Thief”. Grace ficou conhecida como a “Musa de Hitchcock”. Com “The Country
Girl”, de George Seaton, ganha o Oscar, e até 1956, data em que abandona o
cinema, ainda interpreta “Green Fire”, de Andrew Marton, “The Bridges at
Toko-Ri”, de Mark Robson, “The Swan”, de Charles Vidor e “High Society”, de
Charles Walters. Pouco depois casa com o Príncipe Rainier do Mónaco,
tornando-se assim princesa, muito badalada em revistas de jet set. Teve três
filhos, Carolina, Alberto II e Estefânia. Morreu em 1982, num acidente de
automóvel, com 52 anos de idade. Está sepultada na Catedral de São Nicolau, na
cidade do Mónaco.
Filmografia:
Como actriz: 1948-1954: Kraft Television Theatre (série de TV) –
episódios “Old Lady Robbins”, “The Small House”, “The Cricket on the Hearth”,
“Boy of Mine” e “The Thankful Heart”; 1950: Somerset Maugham TV Theatre (série
de TV) – um episódio; The Clock (série de TV) – episódio “Vengeance”; Big Town
(série de TV) – episódio “The Pay-Off”; Actor's Studio (série de TV) -
episódios “The Swan”, “The Token”, “The Apple Tree”; Believe It or Not (série
de TV) – episódio “The Voice of Obsession”; 1950-1952 Studio One (série de TV)
– episódios “The Kill”, “The Rockingham Tea Set”; Lights Out (série de TV) –
episódios – “The Borgia Lamp” (1952); “The Devil to Pay” (1950); Danger (série
de TV) – episódios – “Prelude to Death2 (1952); “The Sergeant and the Doll”
(1950); 1950-1953 The Philco Television Playhouse (série de TV) – episódios
“The Way of the Eagle”, “Rich Boy”, “The Sisters”, “Leaf out of a Book”, “Ann
Rutledge”, “Bethel Merriday”; 1951: Fourteen Hours (14 Horas), de Henry
Hathaway; Nash Airflyte Theatre (série de TV) – episódio “A Kiss for Mr.
Lincoln”; The Prudential Family Playhouse (série de TV) - episódio “Berkeley
Square” (1951); 1951-1952 Armstrong Circle Theatre (série de TV) – episódios
“Recapture”, “City Editor”, “Brand from the Burning”, “Lover's Leap”; 1952:
High Noon (O Comboio Apitou Três Vezes), de Fred Zinnemann; Goodyear Television
Playhouse (série de TV) – episódio “Leaf Out of a Book”; The Big Build Up
(teledramático) – episódio “Don Quixote”; Suspense (série de TV) – episódio
“Fifty Beautiful Girls”; Robert Montgomery Presents (série de TV) – episódio
“Candles for Theresa”; 1952-1953: Lux Video Theatre (série de TV) – episódios
“The Betrayer”, “A Message for Janice”, “Life, Liberty and Orrin Dudley”; 1953:
Mogambo (Mogambo), de John Ford; 1954: Dial M for Murder (Chamada para a
Morte), de Alfred Hitchcock; 1954: Rear Window (Janela Indiscreta), de Alfred
Hitchcock; The Country Girl (Para Sempre), de George Seaton; Green Fire
(Tentação Verde) de Andrew Marton; The Bridges at Toko-Ri (As Pontes de
Toko-Ri), de Mark Robson; 1955: To Catch a Thief (Ladrão de Casaca), de Alfred
Hitchcock; 1956: The Swan (O Cisne), de Charles Vidor; High Society (Alta
Sociedade), de Charles Walters.
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