ENTRE DUAS LÁGRIMAS (1952)
“Carrie”
(Entre Duas Lágrimas) parte de um romance de Theodore Dreiser ("Sister
Carrie"), um dos mais importantes escritores norte-americanos do início do
século XX. Theodore Herman Albert Dreiser (1871—1945) pertenceu ao naturalismo
social, de tendência socialista e mesmo comunista (filiou-se no partido
comunista norte-americano alguns meses antes de morrer), sendo “Sister Carrie”
(1900) o seu primeiro romance, a que se seguiram outros que tiveram igualmente
adaptações cinematográficas, como “An American Tragedy”, de Josef von Sternberg
(1931), mais tarde outra vez adaptado, em 1951, com o título “A Place in the
Sun”, por George Stevens.
"Sister
Carrie",
passado ao cinema por Ruth
Goetz e Augustus Goetz, sofreu várias alterações, desde logo no título que, no
cinema, perdeu o “Sister” para não ser tomado como obra religiosa. Mas o férreo
código Hays exerceu ainda forte censura durante a adaptação que inicialmente
foi proibida. Mas, de concessão em concessão, lá se conseguiu um argumento que
passou, surgindo sobretudo muitos acertos na figura de Carrie, que foi muito
nuanceada na descrição da sua personalidade. Carrie Meeber (Jennifer Jones) é
uma jovem que vive numa pequena cidade da província e parte para Chicago para
melhorar a sua vida. Instala-se em casa de uma irmã, mas rapidamente se deixa
seduzir por um pequeno industrial, Charles Drouet (Eddie Albert), que a põe por
conta e a leva a jantar a um restaurante sofisticado, dirigido por George Hurstwood
(Laurence Olivier), homem muito mais velho que ela, casado com Julie Hurstwood
(Miriam Hopkins) e pai de filhos, que se apaixona e deixa a família para vir
viver com ela. O desenrolar da trama funciona como um melodrama de paixões
intensas, com trajectos de vida desencontrados, enquanto Carrie sobe na vida
como artista de music-hall, George afunda-se na mais completa indigência moral
e física. A história, sem a grandeza “épica” de um “O Anjo Azul”, aproxima-se
deste, com a figura feminina a ostentar um comportamento de compaixão muito
diferente. Mas a grandeza da obra está na forma como descreve o ambiente social
do século XIX nos EUA, como acompanha a evolução das personagens, mas também na
hábil realização de William Wyler e dos seus colaboradores, desde o director de
fotografia, Victor Milner, magnífico na fotografia a preto e branco, ao
compositor David Raksin, aos directores artísticos Roland Anderson e Hal
Pereira, aos figurinos da eterna Edith Head. Todos concorrem para uma obra de
grande qualidade plástica, que se pressente, aqui e ali, quase totalmente
rodada em estúdio (Paramount Studios - 5555 Melrose Avenue, Hollywood, Los
Angeles), mas que mantém uma plausibilidade evidente.
Curiosamente,
e apesar do rigor da censura, “Entre Duas Lágrimas” ainda deixa passar muitos
sintomas de uma sociedade hipócrita e de falsa moral, onde a chantagem
económica prevalece e arruína estatutos sociais, onde a mulher é vista como
elemento a valorizar em função do seu físico, onde a vida familiar vive da
aparência, onde a miséria se instala em todos os estratos sociais, da miséria
económica à miséria moral.
William
Wyler é um cineasta dos mais interessantes neste período (dos anos 40 a 60),
com uma filmografia que fez frente a John Ford, causando até certa polémica nos
meios da crítica internacional, que opunha um ao outro, como o mestre
incontestável do cinema norte-americano. Na verdade, a sua obra é
impressionante de qualidade e vigor, de sensibilidade e de interesse humano e
social, denotando mesmo um certo estilo muito próprio, pela delicadeza dos
movimentos de câmara, a justeza dos planos-sequência, e sobretudo a discreta
mas perturbante direcção de actores. Tudo o que se pode admirar nesta obra de
uma envolvência emocional extrema, galopando serenamente para o melodrama, sem
nunca retirar os pés de uma sólida crítica social. Atente-se na sequência que
assinala o encontro de Carrie e George no interior do restaurante, com a câmara
a acompanhar o movimento de ambos, divididos por uma parede de vidro que os separa
(e os une). Veja-se o excelente desempenho de todo o elenco, com particular
destaque para Jennifer Jones, Laurence Olivier e Eddie Albert, todos eles em
momentos altos das suas carreiras.
Como
curiosidade, diga-se que Laurence Olivier aceitou interpretar o papel de George
Hurstwood para poder estar em Hollywood ao mesmo tempo que a mulher, Vivien
Leigh, que nessa altura criava a fabulosa personagem de Blanche, em “Um
Eléctrico Chamado Desejo” (1951). Conhecido o clima de turbulência sentimental
que o casal atravessava e as crises de instabilidade de Vivien Leigh, esta terá
sido uma boa opção de Olivier que, todavia, não evitou o divórcio, tempos
depois.
ENTRE DUAS LÁGRIMAS
Título original: Carrie
Realização: William Wyler (EUA, 1952);
Argumento: Ruth Goetz, Augustus Goetz, segundo romance de Theodore Dreiser
("Sister Carrie"); Produção: Lester Koenig, William Wyler; Música:
David Raksin; Fotografia (p/b): Victor
Milner; Montagem: Robert Swink; Direcção artística: Roland Anderson, Hal
Pereira; Decoração: Emile Kuri; Guarda-roupa: Edith Head; Maquilhagem: Larry
Germain, Wally Westmore; Som: Leon Becker, John Cope, Hugo Grenzbach; Efeitos
visuais: Farciot Edouart; Companhia de produção: Paramount Pictures; Intérpretes: Laurence Olivier (George
Hurstwood), Jennifer Jones (Carrie Meeber), Miriam Hopkins (Julie Hurstwood),
Eddie Albert (Charles Drouet), Basil Ruysdael (Mr. Fitzgerald), Ray Teal
(Allen), Barry Kelley (Slawson), Sara Berner (Mrs. Oransky), William Reynolds
(George Hurstwood, Jr.), Mary Murphy (Jessica Hurstwood), Harry Hayden
(O'Brien), Charles Halton, Walter Baldwin, Dorothy Adams, Jacqueline deWit,
Harlan Briggs, Melinda Plowman, Donald Kerr, Don Beddoe, John Alvin, Charles
Smith, Frank Wilcox, etc. Duração:
117 minutos; Distribuição em Portugal (DVD): Paramount / Lusomundo
Audiovisuais; Classificação etária: M/ 12 anos; Data de estreia em Portugal: 29
de Abril de 1953.
JENNIFER JONES (1919-2009)
Poucas
actrizes se podem gabar de terem sido nomeadas quatro anos sucessivos para o
Oscar de Melhor Actriz. Poucas se podem gabar igualmente de ganhar a estatueta
logo na sua primeira interpretação como protagonista. Jennifer Jones ganhou o
Oscar de Melhor Actriz em 1944, com “A Canção de Bernardette”, e recebeu mais
quatro nomeações para o mesmo troféu: 1945, “Desde Que Tu Partiste”; 1946:
“Cartas de Amor”; 1947: “Duelo ao Sol”; e 1956: “A Colina da Saudade”. Ganhou
ainda o Globo de Ouro de Melhor Actriz num filme dramático, ainda em 1944, para
“A Canção de Bernardette”.
Jennifer
Jones nasceu com o nome de Phylis Lee Isley, em Tulsa, Oklahoma, EUA, a 2 de Março de
1919, tendo falecido em Malibu, EUA, a 17 de Dezembro de 2009. Os pais, Flora
Mae e Phillip Ross Isley, viajaram pelo interior do país com uma barraca de
espectáculos que dirigiam. Jennifer Jones estudou na Faculdade Monte Cassino
Junior, em Tulsa, e na Universidade Northwestern, em Illinois, onde foi membro
da irmandade Kappa Alpha Theta, antes de se transferir para a Academia
Americana de Artes Dramáticas de Nova Iorque, em 1938. Foi aqui que conheceu
Robert Walker, com quem se casou a 2 de Janeiro de 1939. Ainda como Phylis
Isley, e já em Hollywood, conseguiu dois papéis pequenos, primeiro no western
de 1939 “New Frontier”, e no serial “Dick Tracy's G-Men”, antes de ser recusada
pela Paramount Pictures. Em Nova Iorque foi modelo de chapéus, da agência de
John Robert Powers, quando percebeu que o produtor David O. Selznick fazia
testes para encontrar a protagonista de “Claudia”, peça teatral de Rose
Franken, de grande êxito. Ela apreceu, mas sentiu-se tão mal no teste que
fugiu, em lágrimas. Selznick, entretanto, ficou de tal forma impressionado que
a mandou regressar, assinando um contrato de sete anos com ela (mais tarde
assinaria um de vida intera, casando com a actriz, provocando o divórcio de
Robert Walker, que irá falecer pouco depois, vítima de álcool e drogas). Foi
Henry King quem a contratou, já sob o nome de Jennifer Jones, para o seu novo
filme, “A Canção de Bernardette”, entregado-lhe o papel de Bernadette
Soubirous, o que a leva ao Oscar de Melhor Actriz, alcançado no dia em que
completava 25 anos. A concorrer com ela estava Ingrid Bergman (em “For Whom the
Bell Tolls”), a quem pediu desculpa por lhe “roubar” a estatueta. Mas Bergman
respondeu-lhe: "Não, Jennifer, sua Bernadette foi melhor do que a minha
María". No ano seguinte, com as duas novamente nomeadas, Ingrid Bergman
receberia o Oscar por “Gaslight” das mãos da amiga. Foi o início de uma
carreira carregada de sucessos, sempre orientada pela visão de Selznick. Em
“Duel in the Sun”, escrito e produzido por Selznick para glória de Jennifer,
esta brilha a grande altura, num registo completamente diferente de
Bernardette, fogosa e sensual. “Since You Went
Away” (1944), “Love Letters” (1945), “Cluny Brown” (1946), “Portrait of Jennie”
(1948), “Madame Bovary” (1949), “Carrie” (1952), “Ruby Gentry” (1952), “Beat
the Devil” (1953), “Good Morning Miss Dove” (1955), “Love is a Many-Splendored Thing”
(1955), “The Man in the Gray Flannel Suit” (1956) ou “A Farewell to Arms”
(1957) são momentos altos na sua filmografia. O seu derradeiro papel no cinema surge
no filme catástrofe “The Towering Inferno” (1974), retirando-se depois, após o
seu terceiro casamento, com o industrial multimilionário e coleccionador de
arte Norton Simon. O casal sobreviveu a várias mortes violentas: um filho de
Jennifer e de Robert Walker suicidou-se. Robert Walker, como já vimos, não
sobreviveu muito tempo ao divórcio de Jennifer. A filha resultante do seu
segundo casamento, Mary Jennifer Selznick, suicidou-se, em 1976, lançando-se da
janela do vigésimo andar de um prédio. Um filho de Norton Simon, de um anterior
casamento, suicidou-se igualmente. Em Novembro de 1967, ela própria tentou
suicidar-se, num hotel de Malibu. Preocupada com as doenças mentais e dada à
psicologia, em 1980 doou um milhão de dólares para criar a “Jennifer Jones
Simon Foundation for Mental Health and Education”. Jennifer e Norton casaram em
1971, depois de se terem conhecido numa festa-leilão em que era posto à venda o
quadro de Jennifer Jones que aparece em “Portrait of Jennie”. Norton Simon
morreu em Junho de 1993, e a mulher passou a presidente e administradora
emérita do Museu Norton Simon, em Pasadena. Viveu os últimos anos no Sul da
Califórnia, depois de ultrapassar um cancro de mama, recusando-se a dar
entrevistas e raramente aparecendo em público. Morreu de causas naturais, a 17
de Dezembro de 2009, aos 90 anos de idade. Encontra-se sepultada no Forest Lawn
Memorial Park (Glendale), Glendale, Los Angeles, EUA. Casada com Robert Walker
(1939 - 1945), David O. Selznick (1949 - 1965) e Norton Simon (1971 - 1993).
Filmografia:
Como actriz: 1939: New Frontier, de George
Sherman; The Streets of New York (TV); Dick Tracy's G-Men (O Espião Assassino),
de William Witney e John English; 1943: The Song of Bernadette (A Canção de
Bernadette), de Henry King; 1944: Since You Went Away (Desde Que Tu Partiste),
de John Cromwell; The Fighting Generation (curta-metragem); 1945: Love Letters
(Cartas de Amor), de William Dieterle; 1946: Duel in the Sun (Duelo ao Sol) de
King Vidor; Cluny Brown (O Pecado de Cluny Brown), de Ernst Lubitsch; 1948:
Portrait of Jennie (O Retrato de Jennie), de William Dieterle; 1949: We Were
Strangers (Os Insurrectos), de John Huston; Madame Bovary (Madame Bovary), de
Vincente Minnelli; 1950: Gone to Earth (A Raposa) de Michael Powell e Emeric
Pressburger; The Wild Heart (nova versão de A Raposa, imposta por Selznick), de
Michael Powell, Emeric Pressburger e Rouben Mamoulian (para a versão
americana); 1952: Carrie (Entre Duas Lágrimas), de William Wyler; Ruby Gentry
(A Fúria do Desejo), de King Vidor; 1953: Stazione Termini (Estação Terminus),
de Vittorio De Sica; Beat the Devil (O Tesouro de África) de John Huston; 1955:
Love Is a Many-Splendored Thing (A Colina da Saudade), de Henry King; Bonjour
Miss Dove (Bons Dias, Miss Dove), de Henry Koster; 1956: The Man in the Gray
Flannel Suit (O Homem de Fato Cinzento), de Nunnally Johnson; 1957: The
Barretts of Wimpole Street (Miss Bá), de Sidney Franklin; A Farewell to Arms (O
Adeus às Armas), de Charles Vidor; 1962: Tender is the Night (Terna é a Noite),
de Henry King; 1966: The Idol (O Ídolo Quebrado), de Daniel Petrie; 1969:
Angel, Angel, Down We Go de Robert Thom; 1974: The Towering Inferno (A Torre do
Inferno), de John Guillermin; 1989: The American Film Institute Salute to
Gregory Peck (TV), de Louis J. Horvitz.
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